
Caminhava de forma lenta e sonolenta, como costumava caminhar nas manhãs de segunda-feira. Era cedo. Muito cedo. A cidade amanhecia coberta por um forte nevoeiro, que por ele, nem havia sido notado. A sonolência dopava seus sentidos. A névoa era espessa, absurda, insólita. Envolvia tudo. Envolvia todos. Sabia de cor o caminho até o ponto de ônibus, por isso, as primeiras duas quadras foram assumidas pelo piloto automático. Tinha se levantado a quase uma hora, mas só acordou quando bateu a cabeça no orelhão. Enfim percebeu a tenebrosidade do maldito nevoeiro. Não conseguia ver dois palmos a frente. Tentava tatear a rua com os pés. Dava passos tímidos, ridículos. Mal saia do lugar. Quando resolvia ousar e dar uma passada mais larga, ou chutava algo ou tropeçava no meio-fio. Poucas horas depois os pés cansaram de falhar. Sabia que logo tudo voltaria ao normal. O velho conformismo. Se agachou, de forma quase confortável. Pensou nas contas que precisava pagar. No chuveiro que já quase nem esquentava. No filme do Bruce Willis que viu na noite anterior. Até que não pensou em mais nada.
Não sabia quanto tempo passou naquela posição. Havia perdido o pouco que lhe restara da percepção temporal. Ao se levantar, quase caiu. Suas pernas estavam dormentes. Assim como sua cabeça. Condição ideal para o piloto automático tomar as rédeas outra vez. Em poucos passos chegou até a copa, onde era servido o café. Um lugar estreito e desconfortável, impossível de ser ocupado por mais de uma pessoa sem gerar desconforto e constrangimento. Tinha um pote ao lado da garrafa térmica, que era abastecido com biscoitos amanteigados todas as segundas. Não pareciam frescos, resolveu comer mesmo assim. Não teve dúvida, já era terça-feira, o biscoito estava amanhecido. Deu um gole generoso no líquido morno que enchia sua caneca. Quase vomitou. Nada pior que um café passado há mais de sete horas. Pensou no chuveiro novamente, precisava dar um jeito nisso. Mas não hoje. Estava cansado. Talvez por isso, até a cadeira dura que encontrou, lhe pareceu confortável.
Em algum momento começou a ouvir vozes, vindas sabe-se lá donde. Na maioria das vezes, ordenando. Sempre obedecia. Mesmo quando não fazia sentido. Fazer sentido, já nem sabia mais o que era isso. As vezes a voz autoritária cessava, pouco tempo depois outras vozes eram ouvidas. Essas, em tom de lamúria. Algumas em tom de descontração, poucas delas. Seu Alfredo sempre fazia piadas preconceituosas, nunca achou graça. Ria por preguiça de discutir. Ria porque não tinha pra onde correr. Só não queria encontrar o seu Alfredo na hora de pegar mais um copo de café. Na verdade, não queria encontrar ninguém, estava farto de conversas de elevador. Não, não queria saber se iria chover. Se não iria chover. Se tal celebridade foi internada numa clinica de recuperação pela sétima vez. Ou se o Vasco tinha perdido mais uma partida. Queria mesmo alguém pra arrumar seu chuveiro. Já era quinta-feira, quem denunciou isso foi a Grande Família. Que agora passava na televisão, onde se abria uma pequena fresta de luz em meio ao nevoeiro.
A agitação no refeitório era descomunal. Não entendia como as pessoas ficavam tão felizes em comer uma feijoada feita de restos de toda a semana. Não entendia muitas coisas, muito porque não se preocupava em tentar entender. Mas nisso ele realmente pensava, mesmo assim não entendia. A tarde se arrastava como nunca. A névoa o limitava como sempre. Ao alcance dos seus olhos, só as planilhas. Os dedos sabiam todos os atalhos. Se dominava alguma coisa na vida, era o metódico Excel. Nesse mês ele vai bater as metas com folga. Mesmo isso não significando muita coisa, como de costume. Os dedos cansados pararam de teclar. Repousou as costas na cadeira, deixou o silêncio tomar conta. Viu um feixe de luz, distante, difuso. O coração bateu mais forte. Aos poucos a luz se aproximava, vinha de um farol. A boca secou. Os olhos atentos mal piscavam. A esperança enfim passou a ganhar força. Ao chegar bem próximo do farol, sabia que era hora de descer do ônibus. Apesar da noite já ter chego e da precariedade dos postes de luz, via tudo claramente ao seu redor. Estava a poucas quadras de casa e não via a hora de chegar. Queria aproveitar cada momento como se fosse o último. Suspeitava que o nevoeiro não iria aparecer. Pelo menos nos próximos dois dias.
Gabriel Protski