Quarta-feira 0 879

Cheguei no posto de gasolina com a minha mulher e pedi para o frentista me dar a chave do banheiro. Ele me olhou meio torto, porque estava falando alguma merda sobre escapamento de carro com o outro frentista, mas aí me respondeu que não precisava de chave, que a porta era aberta mesmo e que o banheiro era do lado da plataforma. Pedi pra colocar cinquentão de gasolina normal, que já está cara demais, e fui. Minha mulher foi pagar o combustível no débito na loja de conveniência, e fui até o banheiro, torcendo para que não estivesse fedendo demais. Esqueci de pedir para ela comprar uma água com gás para mim, mas ia ficar para a próxima. Uma moto barulhenta passou voando pela rua, e os dois frentistas idiotas comemoraram. Já fui mais desse tipo de coisa, de carrão, de motona, de motor, desse tipo de bobagem. Hoje sou mais de pagar minhas contas, fazer bem para quem me ama, e o resto que se foda. Como é bom envelhecer.

A porta estava trancada, e aí fiquei em primeiro na fila, louco para que quem quer que estivesse dentro fosse rápido, porque eu estava me mijando nas calças. Um cara se aproximou por trás tomando um vinho vagabundo, e me perguntou se era a fila. Claro que era a fila, e ele não perguntou para eu responder, mas sim para avisar que também estava esperando, e que também queria que eu não demorasse quando entrasse. A gente só percebe as partes importantes depois. Ouvi uma música dentro da loja de conveniência, mas não tenho certeza do nome. Já ouvi várias vezes, toca até na novela das nove, que eu vejo todo dia, mas finjo que não gosto e que só estou vendo para acompanhar minha mãe, mas mesmo assim eu não sabia o nome da música, nem do cara que canta. Aliás, não sei até agora. Deve ser aquele imitador do Zezé de Camargo, aquele tal de Eduardo Costa, ou sei lá. Vou comprar o CD da trilha sonora, jogar num pendrive e ouvir andando por aí, que aí não esqueço. Lembro que foi bom ficar pensando na música, porque aí eu esqueci um pouco do frio e da minha vontade de mijar logo. O cara do vinho disse “Friozão, né?” e eu respondi “pois é!”, porque estava mesmo muito frio. Ele estava sorrindo quando eu virei para olhar, e fiquei um pouco irritado com isso, por algum motivo, mas ainda assim dei um sorriso meio simpático, não sei por quê. Um sorriso a mais nunca acabou com meu estoque.

O filho da puta que estava no banheiro devia estar cagando, porque estava demorando mais ainda. Quanto será que é o tempo médio para um cara mijar? Trinta segundos? Um minuto? Ou ele podia estar cheirando pó ali dentro, mas aí acho que eu ia ouvir. Não que eu estivesse prestando muita atenção, mas começou a me incomodar. Para gastar o tempo, virei para o cara que estava atrás de mim, e complementei minha meia-resposta de um pouco atrás. “Mas você já deve tar quente, com isso aí, né?”, e sinalizei com a cabeça para a garrafa, que já tinha passado da metade. “Pior que é. Pra mim, até que tá bom”, ele respondeu, sorrindo sozinho. Que raiva de gente que dá risada sem motivo. “Na minha época de moleque eu bebia isso aí pra caralho, direto, mas agora eu não tomo mais essa coisa”. “Ah, é meio ruim, mas é o que dá pra pagar, né?”. “É, tem isso. É barato, pelo menos. Uma vez tomei um porre com uns amigos disso, e aí nunca mais. Pra mim não”. “Eu tomava quando era moleque, mas de vez em quando ainda tomo essa merda”.

O cara saiu do banheiro, quase pedindo desculpas, mas aí eu já não estava mais bravo. Minha mulher já tinha voltado, e estava atrás do cara da garrafa, e aí olhei para ela e levantei a mão, avisando para ela esperar um pouco mais. Com certeza ela não precisava que eu a lembrasse disso, mas a gente dá mesmo esses sinais óbvios, porque não sabe muito o que fazer.

Não sei por que, mas resolvi terminar minha história para o cara da garrafa, e expliquei do dia em que meus pais viajaram no fim de semana, e aí chamei a molecada lá para casa, para a gente encher a cara e jogar videogame, na época Playstation 2, e que descemos para o posto de gasolina e compramos uma garrafa daquelas para cada um dos seis que estavam no dia, mais três, porque a gente era mais idiota que é agora. O cara estava ouvindo a história meio desinteressado, e até abriu a tampa para tomar mais um gole, mas aí terminei a história, disse que vomitamos um monte, e que graças a Deus hoje prefiro tomar uma coisinha mais gostosa, e aí foi a vez dele de dizer “pois é, é foda”, meio para acabar a conversa.

Entrei no banheiro e mijei. Foi a iluminação. O banheiro estava limpo, e tinha até um aviso da empresa sobre como aquele banheiro deve estar sempre bem cuidado e, se não estivesse, que o cliente poderia avisar a equipe do posto, porque essa é uma das obrigações deles. Não imagino ninguém sendo tão cuzão a ponto de fazer isso, mas o que tem de nego filha da puta por aí não é brincadeira, e eu não consigo imaginar tudo que acontece, também.

Saí, dei tchau para o cara da garrafa e comecei a voltar para o carro. Minha mulher perguntou quem era ele, eu disse que tinha conhecido ali, e ela não respondeu nada. Acho que ela não se importa muito com quem são as pessoas que eu conheço desses jeitos idiotas, mas tudo bem. Não me incomoda. Acho que ela não gosta dos meus amigos, mas isso também tanto faz, porque eles também não gostam dela. Seis anos de namoro, e é assim que eles agem. Mas tudo bem. Nem ela, nem eles falam um “a” desse assunto na minha cara, então problema dela, e problema deles.

O primeiro sinal que avistamos depois que saímos do posto estava verde, e passei numa boa.

Marco Antonio Santos

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Escala de Baumé 0 4999

Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Vida comum parte 1 0 5164

Vida comum parte 1

Véspera de feriado, antes da meia-noite e eu já com meia garrafa de conhaque na mente. Curtia me derreter no gole, de dose, de lata, de garrafa, de todo jeito. No feriado rolou um churrascão que nem lembro se comi, dropei umas caipiras antes de acender o fogo e fiquei mais preocupado com a temperatura das garrafas que da carne. Sábado a ressaca com a mão pesada, tava batendo forte, contra-ataquei com uns latão, encostado nos fundos do posto com a rapeize, só flagrando os doidinho tirando uns racha de Parati, Chevette e Gol Chaleira. Domingo rolou rave na região metropolitana, no meio do mato, não virava ir de bonde, botei uma gasolina na Bizz e meti o pé; duas carteiras de Minister depois já tinha descido whisky com energético, vodka com suco, vários ampola, um doce e umas água colorida que os parceiro botaram, sei lá qual fita, puta gosto de remédio. Bati a nave antes da hora, cheguei em Grayskull sem nem aproveitar a viagem, ensaiava falar e não saia voz, tava tenso, me mordendo, fiquei nervoso: deu bad. Tentei endireitar a caminhada tomando umas águas, mas não rolou, a conta não batia, os dentes rangendo, coração agitado querendo se mudar do peito. Precisava voltar pra minha goma, tomar um banho, talvez dois, sei lá, só precisava vazar, montei na moto e fui. Tava com dois IPVA atrasados, cabreiro de cair numa blitz, e se soprasse um bafômetro explodia a máquina – certeza. Queria chegar logo, entrei no modo Valentino Rossi e corri a milhão, como se fosse fuga. Foi aí que deu ruim no piloto automático, se pá que dormi em cima do jato, lembro só de uns clarão, uns flash. Vi o céu por baixo, deitado no asfalto, sei lá qual fita, tudo nublado, que dia bosta. Me liguei e já tava todo remendado no hospital, numa sala com umas vinte cabeça, todo mundo fudido, uns mais outros menos. Eu? Era cabeça de chave do grupo dos desgraçados: com a lata do frankstein, olho roxo, cara inchada, nariz quebrado, uns ponto na testa. Trinquei uma costela e quebrei outras duas, a clavícula rachou e a mão tava na carne viva. O médico foi desenrolando essa lista aí e eu aceitando na moral, os pensamentos embaçados, cheio de analgésico, todo bagunçado de dor. Aí teve uma mão que ele deu uma pausa, ficou mais bolado e mandou A real: disse que eu sofri um choque cabuloso no quadril, perdi mais de 80% do fígado, que num tinha como dizer o tamanho real do estrago, mais uma fita era certa, nunca mais ia poder beber, se tomar meia lata que seja, posso encomendar o caixão. Acordei umas três vezes crente que tava tendo um pesadelo, foquei umas horas que tava numa brisa errada de doce. Mas não. A vida é uma viagem desgraçada.