
por Henrique B. Lense
Não tenho certeza se eu tinha oito, nove, dez ou onze anos, mas vamos todos supor que eu tinha nove, para dar um ar um pouco mais heróico ou mesmo para esconder que eu fui a criança que perdeu os dentes de leite mais tarde que eu conheço. Com ou sem ironia, também era filho de dentista, e a sangrenta história a ser narrada foi longe de ser a pior que eu já tive com aqueles pálidos pedaços de cálcio mal esculpido.
Se não estivessem presos a minha gengiva acredito que se soltariam e formariam um sorriso em espiral, quase como uma daquelas escadas de casas antigas, de tão tortos. Todavia, o fato em questão se refere a um dos dentes que não tinha uma tendência tão exagerada de Oscar Niemeyer. Apenas percebeu que seu tempo em minha boca já deveria chegar ao fim e começou então a amolecer e ir pra trás ou pra frente dependendo da provocação. Era, como qualquer outro, um dente de leite sem longa vida.
Coitado, deve ter pensado que seria puxado rapidamente e choraria poucas gotas de sangue. Seria limpo e colocado debaixo do travesseiro, gananciosamente aguardando uma fada bela e pura nascida de uma serenata de Chopin. Mal sabia o albino que seria capturado na verdade por um Brother of Metal que me convenceu, pela circunstância, a sacrificá-lo em nome de uma adrenalina que diferenciou a experiência de qualquer outra batalha dentária.
Mais de uma hora já havia se passado em frente aquele espelho. Uma tortura interminável de tentar arrancar um dente que não queria sair. Cada puxão uma nova dor e mais sangue, até que chegou um ponto em que ele já conseguia bailar pendurado na arcada superior da minha boca. Apenas um maldito fio se mantinha prendendo-o a gengiva.
For you to know about yourself; Not lie and make you believe…
Foi no meio de tão duradoura agonia que chegou meu irmão em casa, que já devia ter uns 18 anos ou mais. Com a fome que devia estar, foi jantar tranquilamente. Até que, passando pelo banheiro do corredor repetidas vezes, começou a se incomodar com toda minha reclamação e sofrimento. Então, rispidamente ele pegou o seu laptop com pelo menos uns 35Gb de rock, heavy metal e agregados. Chamou-me para a sala. “Já sei como você vai arrancar esse dente, Henrique!”
You seem to wonder why ; Hundreds of people die; You’re writing tickets man…
Após procurar um pouco nos arquivos do computador, achou a banda que queria: Pantera! E eu, que não conhecia essa banda até o fatídico dia, me impressionei. Não sei se mais com a música extremamente pesada (hoje em dia eu adoro, ferre-se a fada-do-dente) ou com o sorriso “Smiling like a killer” do meu irmão. O nome da música, mais que apropriado: Fucking Hostile.
I’d bust the punks; That rape steal and murder; And leave you be…
-Vamos lá, Henrique, se esse dente não saiu na força vai sair pelo Metal!
To see ; to bleed; cannot be taught….
-Grita comigo: Dor, doooor, eu gosto de dooor, wrhaaaa. Puxa esse dente, Henrique!
In turn; You’re making us ….
-Agora soca a minha mão…isso! – ele também socou a minha – dor, eu gosto de dor!
Fucking, fucking , fucking…
Completamente fora de mim, me entreguei pela primeira vez ao headbanging (mesmo de cabelo ainda raspado na época), aos berros, pulando ao som da música enquanto tentava arrancar o dente com as próprias mãos. Diria ainda que estavam as duas banhadas em sangue como em uma típica cena de crime. A bateria frenética e a violenta voz de Phil Anselmo rasgavam a audição e a covardia, pelo menos por um instante, antes de ambas se regenerarem.
FUCKING…
Por fim, numa ultima forçada com um berro de “Dor!”, o infeliz foi arremessado com tanta força que saiu quicando pela sala, ainda espirrando sangue. Deu até um pouco de trabalho para achar depois, mas tudo valeu a pena. Não se devem desperdiçar os ensinamentos mais barulhentos que a vida nos dá. No dia, lembro-me de ter visto meu irmão tão confiante que achei que ele já tinha feito coisa parecida algumas vezes. Alguns dias atrás ele me confirmou que foi espontâneo, aquela foi a única vez. Quem diria.
HOSTILE !