Nossa primeira viagem juntos 2 852

Ah, puta que o pariu, como dói essa porra, caralho! caralho, caralho, caralho, caralho…

Como é horrível a dor de chegar aqui e não encontrar você, Pérsio. Gritar palavrões foi a primeira coisa que fiz em Machu Picchu, porque vi numa pesquisa dessas bizarras que gritar e xingar alivia a sensação de dor. Pois bem, filho. Vociferei ao mundo, que me devolveu a fúria em forma de ecos, mas a dor da sua ausência continua sendo o maior sentimento em mim.

As pessoas ao redor não entenderam meus gritos e logo fui reprovada pelos que sim. Os que não compreenderam as palavras, simplesmente fizeram caras de espanto com o barulho, mas logo seguiram indiferentes. Talvez um dos maiores dons dessa vida: permitir-se não compreender as coisas.

Desde que desembarquei, me enrolei o máximo que pude pra chegar aqui em cima. É como naqueles dias em que saio do trabalho e não consigo fugir da volta pra casa. Quando estamos sós, procuramos todos os dias o caminho de volta mais longo. É como pudéssemos adiar a dor de uma casa vazia. Mas fatalmente chegamos. Sempre chegaremos.

Como pode o mundo aceitar que você não esteja mais aqui?

Antes mesmo de nascer, você já havia me ensinado o que era ser mãe. As mudanças em meu corpo, as agitações na barriga madrugada adentro. Criava uma vida e infinitos destinos pra gente.

Seu pai nunca soube da sua existência, e me culpo por isso. Aquele filho da puta não tem ideia do que é criar um filho sozinho. Durante muito tempo senti certo prazer em saber que o castigo dele era não poder receber o seu carinho. Seus abraços, seus beijos, seus boas noites. Puta que o pariu!

Hoje sinto um ódio ainda mais forte por aquele viado, que não está sendo corroído pela dor da tua falta. Me conforta pensar que ele leva uma vida medíocre e solitária por aí, como pagasse pelo erro de ter me abandonado grávida de ti, Pérsio. Mas sei que, no fundo, nada disso aconteceu e que ele deve estar bem tranquilo, com outros três filhos que teve com uma vagabunda qualquer. Tenho pra mim que homens como o seu pai só se relacionam com mulheres sem caráter. Acho que só um filho da puta consegue entender outro filho da puta.

Caralho! Cadê você, Pérsio?

Faz frio nessa época do ano. Bate um vento gelado e é quase impossível ficar parada. Aquelas fotos que você me mostrava daqui devem ter sido tiradas em outra época do ano. Porque agora tem muitas nuvens, e nem consigo ver lá embaixo. Mas ainda assim, é tudo muito lindo. Até as nuvens.

Puta que o pariu!

É impossível lembrar de você e não sorrir, mesmo com toda essa porra de saudade. Muitas foram as vezes em que me culpava por sorrir de alguma situação cotidiana. Pra mim, um simples esboço de felicidade sem você era uma espécie de traição.

Mas hoje eu posso sorrir.

sorrio um
sorriso com
riso e choro
lágrimas
de alegria

Você iria amar isso aqui, Pérsio. Falta ar na subida.

Eu achei que seria estranho ter dificuldades pra respirar. Afinal de contas, a gente sempre evita o que nos causa desconforto. Mas encarei por você e me foi gratificante. Tenho aprendido a valorizar as situações que nos apresentam os pequenos sentidos da vida. Como suas ligações no meio da noite pra dizer que iria dormir fora de casa. Hoje sei que sentia certo prazer em saber que você estava vivendo.

Nunca mais recebi ligações depois das dez da noite.

Uma mãe, quando perde um filho, esquece de viver. Foram meses assim, até que percebi as pessoas ao meu redor, que queriam me ver em pé novamente. A partir daí, comecei a negar. Seria injusto continuar sem você.

Se Deus é realmente justo, tenho medo do que fiz no passado, porque meu castigo dói uma dor maior do que todos os tamanhos ao meu redor desde que você se foi.

O remédio que encontrei pra mim, em meio a este mar gelado, é realizar seus projetos que eu conhecia.

Seus livros eu doei pra biblioteca da escola lá do bairro. Suas roupas distribuí pela vizinhança. Sua cama eu dei para um casal que foi morar na casa lá do lado da nossa. Seu quarto virou um escritório que eu nunca uso.

Nunca achei que poderia mexer nas suas coisas sem você, mas quando tive finalmente calma pra ouvir suas palavras, pude compreender: “Nada deve ficar parado”.

Puta que o pariu! Quem te ensinou tudo isso, Pérsio?

Mas só hoje, dois anos e meio após sua partida, no dia em que você completaria 23 anos, trago suas cinzas ao lugar que você cresceu sonhando conhecer.

É como um milagre ter todo esse universo de lembranças e sensações nessa caixinha tão pequena em meus braços.

Somente agora, depois de viajar, posso compreender que temos sempre pra onde voltar, ainda que o caminho possa variar de acordo com os nossos dias. Eu tenho pra onde voltar, Pérsio.

Tenho certeza de que, um dia, estaremos juntos para sempre em um lugar sem dores nem sofrimentos. Enquanto isso, vou aprendendo dia a dia a conviver com a dor dessa saudade que já é parte de mim.

 

por Rafael Antunes

Previous ArticleNext Article

2 Comments

  1. Rafael…sou mãe de dois jovens, mas por alguns minutos fui mãe de um filho único chamado Pérsio.Por alguns minutos, chorando, fui eternamente a mãe de um jovem arrancado de mim, um jovem amor chamado Pérsio. Que bonito texto, um poema….

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Escala de Baumé 0 4881

Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Vida comum parte 1 0 5065

Vida comum parte 1

Véspera de feriado, antes da meia-noite e eu já com meia garrafa de conhaque na mente. Curtia me derreter no gole, de dose, de lata, de garrafa, de todo jeito. No feriado rolou um churrascão que nem lembro se comi, dropei umas caipiras antes de acender o fogo e fiquei mais preocupado com a temperatura das garrafas que da carne. Sábado a ressaca com a mão pesada, tava batendo forte, contra-ataquei com uns latão, encostado nos fundos do posto com a rapeize, só flagrando os doidinho tirando uns racha de Parati, Chevette e Gol Chaleira. Domingo rolou rave na região metropolitana, no meio do mato, não virava ir de bonde, botei uma gasolina na Bizz e meti o pé; duas carteiras de Minister depois já tinha descido whisky com energético, vodka com suco, vários ampola, um doce e umas água colorida que os parceiro botaram, sei lá qual fita, puta gosto de remédio. Bati a nave antes da hora, cheguei em Grayskull sem nem aproveitar a viagem, ensaiava falar e não saia voz, tava tenso, me mordendo, fiquei nervoso: deu bad. Tentei endireitar a caminhada tomando umas águas, mas não rolou, a conta não batia, os dentes rangendo, coração agitado querendo se mudar do peito. Precisava voltar pra minha goma, tomar um banho, talvez dois, sei lá, só precisava vazar, montei na moto e fui. Tava com dois IPVA atrasados, cabreiro de cair numa blitz, e se soprasse um bafômetro explodia a máquina – certeza. Queria chegar logo, entrei no modo Valentino Rossi e corri a milhão, como se fosse fuga. Foi aí que deu ruim no piloto automático, se pá que dormi em cima do jato, lembro só de uns clarão, uns flash. Vi o céu por baixo, deitado no asfalto, sei lá qual fita, tudo nublado, que dia bosta. Me liguei e já tava todo remendado no hospital, numa sala com umas vinte cabeça, todo mundo fudido, uns mais outros menos. Eu? Era cabeça de chave do grupo dos desgraçados: com a lata do frankstein, olho roxo, cara inchada, nariz quebrado, uns ponto na testa. Trinquei uma costela e quebrei outras duas, a clavícula rachou e a mão tava na carne viva. O médico foi desenrolando essa lista aí e eu aceitando na moral, os pensamentos embaçados, cheio de analgésico, todo bagunçado de dor. Aí teve uma mão que ele deu uma pausa, ficou mais bolado e mandou A real: disse que eu sofri um choque cabuloso no quadril, perdi mais de 80% do fígado, que num tinha como dizer o tamanho real do estrago, mais uma fita era certa, nunca mais ia poder beber, se tomar meia lata que seja, posso encomendar o caixão. Acordei umas três vezes crente que tava tendo um pesadelo, foquei umas horas que tava numa brisa errada de doce. Mas não. A vida é uma viagem desgraçada.