
Ah, puta que o pariu, como dói essa porra, caralho! caralho, caralho, caralho, caralho…
Como é horrível a dor de chegar aqui e não encontrar você, Pérsio. Gritar palavrões foi a primeira coisa que fiz em Machu Picchu, porque vi numa pesquisa dessas bizarras que gritar e xingar alivia a sensação de dor. Pois bem, filho. Vociferei ao mundo, que me devolveu a fúria em forma de ecos, mas a dor da sua ausência continua sendo o maior sentimento em mim.
As pessoas ao redor não entenderam meus gritos e logo fui reprovada pelos que sim. Os que não compreenderam as palavras, simplesmente fizeram caras de espanto com o barulho, mas logo seguiram indiferentes. Talvez um dos maiores dons dessa vida: permitir-se não compreender as coisas.
Desde que desembarquei, me enrolei o máximo que pude pra chegar aqui em cima. É como naqueles dias em que saio do trabalho e não consigo fugir da volta pra casa. Quando estamos sós, procuramos todos os dias o caminho de volta mais longo. É como pudéssemos adiar a dor de uma casa vazia. Mas fatalmente chegamos. Sempre chegaremos.
Como pode o mundo aceitar que você não esteja mais aqui?
Antes mesmo de nascer, você já havia me ensinado o que era ser mãe. As mudanças em meu corpo, as agitações na barriga madrugada adentro. Criava uma vida e infinitos destinos pra gente.
Seu pai nunca soube da sua existência, e me culpo por isso. Aquele filho da puta não tem ideia do que é criar um filho sozinho. Durante muito tempo senti certo prazer em saber que o castigo dele era não poder receber o seu carinho. Seus abraços, seus beijos, seus boas noites. Puta que o pariu!
Hoje sinto um ódio ainda mais forte por aquele viado, que não está sendo corroído pela dor da tua falta. Me conforta pensar que ele leva uma vida medíocre e solitária por aí, como pagasse pelo erro de ter me abandonado grávida de ti, Pérsio. Mas sei que, no fundo, nada disso aconteceu e que ele deve estar bem tranquilo, com outros três filhos que teve com uma vagabunda qualquer. Tenho pra mim que homens como o seu pai só se relacionam com mulheres sem caráter. Acho que só um filho da puta consegue entender outro filho da puta.
Caralho! Cadê você, Pérsio?
Faz frio nessa época do ano. Bate um vento gelado e é quase impossível ficar parada. Aquelas fotos que você me mostrava daqui devem ter sido tiradas em outra época do ano. Porque agora tem muitas nuvens, e nem consigo ver lá embaixo. Mas ainda assim, é tudo muito lindo. Até as nuvens.
Puta que o pariu!
É impossível lembrar de você e não sorrir, mesmo com toda essa porra de saudade. Muitas foram as vezes em que me culpava por sorrir de alguma situação cotidiana. Pra mim, um simples esboço de felicidade sem você era uma espécie de traição.
Mas hoje eu posso sorrir.
sorrio um
sorriso com
riso e choro
lágrimas
de alegria
Você iria amar isso aqui, Pérsio. Falta ar na subida.
Eu achei que seria estranho ter dificuldades pra respirar. Afinal de contas, a gente sempre evita o que nos causa desconforto. Mas encarei por você e me foi gratificante. Tenho aprendido a valorizar as situações que nos apresentam os pequenos sentidos da vida. Como suas ligações no meio da noite pra dizer que iria dormir fora de casa. Hoje sei que sentia certo prazer em saber que você estava vivendo.
Nunca mais recebi ligações depois das dez da noite.
Uma mãe, quando perde um filho, esquece de viver. Foram meses assim, até que percebi as pessoas ao meu redor, que queriam me ver em pé novamente. A partir daí, comecei a negar. Seria injusto continuar sem você.
Se Deus é realmente justo, tenho medo do que fiz no passado, porque meu castigo dói uma dor maior do que todos os tamanhos ao meu redor desde que você se foi.
O remédio que encontrei pra mim, em meio a este mar gelado, é realizar seus projetos que eu conhecia.
Seus livros eu doei pra biblioteca da escola lá do bairro. Suas roupas distribuí pela vizinhança. Sua cama eu dei para um casal que foi morar na casa lá do lado da nossa. Seu quarto virou um escritório que eu nunca uso.
Nunca achei que poderia mexer nas suas coisas sem você, mas quando tive finalmente calma pra ouvir suas palavras, pude compreender: “Nada deve ficar parado”.
Puta que o pariu! Quem te ensinou tudo isso, Pérsio?
Mas só hoje, dois anos e meio após sua partida, no dia em que você completaria 23 anos, trago suas cinzas ao lugar que você cresceu sonhando conhecer.
É como um milagre ter todo esse universo de lembranças e sensações nessa caixinha tão pequena em meus braços.
Somente agora, depois de viajar, posso compreender que temos sempre pra onde voltar, ainda que o caminho possa variar de acordo com os nossos dias. Eu tenho pra onde voltar, Pérsio.
Tenho certeza de que, um dia, estaremos juntos para sempre em um lugar sem dores nem sofrimentos. Enquanto isso, vou aprendendo dia a dia a conviver com a dor dessa saudade que já é parte de mim.
por Rafael Antunes
Rafael…sou mãe de dois jovens, mas por alguns minutos fui mãe de um filho único chamado Pérsio.Por alguns minutos, chorando, fui eternamente a mãe de um jovem arrancado de mim, um jovem amor chamado Pérsio. Que bonito texto, um poema….
poxa Denise; obrigado pelas palavras e pela cumplicidade.