
Naquele dia eu acordei assustado, sem ainda saber o porquê. Cristina havia levantado antes de mim, como sempre, mas havia algo de vazio no ar. Aproveitando a madrugada para trabalhar, eu havia deitado há pouco tempo, e meus olhos resistiam em abrir, assim como minha consciência que alternava entre a vida e a escuridão adormecida, até que ouvi seu grito de dor.
Corri até a sala, onde Cristina se ajoelhava e levava a mão ao peito. Não é que fôssemos velhos, mas já não poderíamos dizer que temos a vida inteira pela frente, e aquilo poderia indicar que teríamos ainda menos. Menos sorrisos, menos abraços, menos eu te amo, menos futuro. Nunca soubemos da família biológica dela, que poderia muito bem ter morrido com ataques fulminantes aos 42, e toda a situação já rodava em minha cabeça meio-acordada. Corri ao seu encontro imaginando o pior. Eu podia ver nossa casa vazia, com as luzes refletindo sem sentido em tons pastéis. A televisão só falaria sobre tragédia e a cozinha não traria mais as boas notícias cobertas com chocolate. O ambiente todo perderia o perfume de lavanda que exalava de sua pele e seria tomado pelo cheiro de gente, o meu cheiro de gente abandonada. Os frascos continuariam destampados, como uma manifestação infantil do meu inconsciente em tentar mantê-la viva, e suas roupas permaneceriam no guarda-roupa porque eu não suportaria tocá-las novamente. Cada vestido me lembraria de um jantar, de um aniversário, de uma viagem. O tecido materializaria a pele que havia por baixo, e a minha satisfação em vê-la se vestir. Eu sentiria falta até mesmo de vê-la usando os pijamas com estampa infantil, como este com ursinhos que ela veste enquanto vai se desfalecendo no chão. O lado dela na cama continuaria com seu formato por alguns meses e então as molas começariam o processo de regeneração, que não seriam capazes de curar a minha dor. Eu não precisaria mais reclamar de levantar para buscar água 2 minutos após deitar, e sentiria falta disso mais do que tudo. Seu chinelinho de pano continuaria debaixo da cama, mas ela não usaria o meu com a desculpa de ser mais confortável. Em consequência, eu passaria a usar o dela, e isso me lembraria que eu sempre gostei de seus pés, tão brancos e delicados. As unhas nunca estavam pintadas e eu achava isso incrivelmente belo. Eu lembraria das poucas vezes em que ela pintava as unhas da mão de vermelho e já chegava da manicure com as desculpas preparadas. Mas eu lembraria mesmo do seus olhos, que mesmo depois de tanto tempo ainda transpareciam vergonha e faziam o rosto corar.
Me ajoelhei junto a ela para entender sua situação e lembrei de quando a pedi em casamento. Eu nunca me senti tão vivo. E agora estou aqui, na mesma posição, procurando a vida nela.
Com cuidado, a levo até o carro e dirijo o mais rápido que posso, buzinando e entrando nos espaços mais improváveis, enquanto olho para ela como se isso a desse mais alguns instantes de vida. O trânsito não anda e o tempo não para. O caminho é longo e a vida é curta.
André Petrini