O Último Dia de Mágica 0 979

A luz da sanduicheira acendeu, mais precisamente na cor verde. Sinal de que as torradas enfim ficaram prontas. Davi nunca gostou de jogar comida fora e sempre foi ótimo em reaproveitar alimentos. Se os pães amanhecem, viram torradas. O que acontece com certa frequência, já que Davi sempre foi péssimo em renovar o cardápio matinal. A conta é bastante simples, num dia pão e no outro torrada. Os acompanhamentos de hoje são café e manteiga, já que a margarina deixou de participar desse revezamento desde que seu primo leu numa revista que fazia mal à saúde. Também leu e ouviu de muita gente que fumar fazia mal à saúde. Mesmo assim, não consegue abandonar o hábito, pelo menos ao término de cada refeição. Sônia sempre detestou o cheiro de cigarro, por isso se tornou um assíduo usuário de creme para as mãos. Seu favorito é o de macadâmia, mesmo não sabendo se isso é uma fruta ou uma folha.

 

Dez e meia da manhã, já é hora de começar a se arrumar. No armário, sobrevivendo sobre um pesado cabide de madeira está seu smoking surrado, com um corte que deixou de ser elegante pelo menos uns dez anos antes de ser adquirido numa liquidação. Abriu sua caixa de gravatas, escolheu uma amarela com bolinhas coloridas. Sua favorita para trabalhar em festas infantis. Quando ingressou na vida de mágico, amava festas infantis. Mas isso foi antes do Mr. M e da internet. Hoje as crianças são tão espertas quanto sádicas, adoram gritar e revelar todos os truques que sabem, além de arremessar coisas e de humilhar velhos e empregados de uma forma geral. Se elas ainda tivessem seus sentidos retardados pelo álcool, como geralmente acontece em festas de fim de ano em empresas com gosto duvidoso, seria mais simples.

 

Cartola, confere. Baralho marcado, confere. Moeda para tirar de trás da orelha, confere. Pomba, confere. Lenço infinito que saí da boca, não confere. Godofredo filho da puta, o cachorro da sua cunhada deve estar cagando a porra do lenço até hoje. Sempre esquecia de repor esse artefato, é um dos únicos que sempre funciona. Bom, paciência, de qualquer forma teria que improvisar, pra dar conta das quatro horas pelas quais foi pago. Tudo cabe na sua velha maleta de couro, que é posta cuidadosamente no banco do passageiro do seu carro. Um Gol mil, ano 92. Esse sim, um mágico de primeira, já passou por cada uma que até Mandrake duvida.

 

O sol nasce pra todos, mas judia mais de alguns. A cama elástica, cheia de crianças se esforçando pra quebrar o pescoço, tinha que ficar na sombra. A máquina de crepes e churros também. Além dos convidados, é claro. Os guarda-sóis, todos na beira da piscina. Se Davi tivesse alguma carta na manga, já teria desmanchado com o suor. Uma tia mais animada bem que tentou, mas não conseguiu angariar uma platéia das mais vastas para o show do mágico. As três crianças presentes até se impressionaram com o truque da moeda. Mas não se sentiram muito a vontade com o show de cartas, talvez estejam acostumadas com essas figuras apenas no Ipad. Com desespero, viu uma das crianças se levantar assim que tentou, sem sucesso, fazer um truque onde a varinha colava em sua mão. Era hora de tirar um coelho da cartola, quase que literalmente. Nesse caso, uma pomba. Chamou uma das crianças restantes para ser sua assistente de palco, invocou suas palavras místicas, “Simsalabim”. Deu um leve tapa na cartola que repousava em sua cabeça, quando a tirasse de lá, a pomba teria liberdade para voar e cagar por onde bem entendesse. Dois segundos de tensão. Ao grito de “Shazam” puxa a cartola para cima. A pomba cai, morta, entre seus pés. As crianças gritam. Davi cai, quase morto, para trás. Os adultos gritam.

 

Sete pontos na cabeça depois, recebe alta médica. Colapso nervoso aliado a queda de pressão. A cabeça dói muito. Mas dói menos que seu ego, em frangalhos, por ter estragado uma festa que foi contratado para animar. Antes de deixar o hospital lhe entregam sua cartola, casaco, maleta e uma caixa com a pomba. Tudo se acomoda com menor zelo no banco de trás do carro, menos a caixa com a pomba, que viaja no banco do passageiro. Ela merece um enterro digno, mas não hoje. Já é tarde demais para fazer qualquer coisa boa por alguém.


Sabe-se lá onde esqueceu o controle do portão, hoje o carro dorme na rua, de novo. Abre a porta de casa e vai direto até a geladeira, puro hábito. Olha tudo, não pega nada. As roupas vão ficando pelo caminho. As pantufas estão na porta do quarto, onde Sônia vê televisão. Deve ser a novela das sete. Ou das nove, vai saber. Se cumprimentam sem nem trocar olhares. Ele deita ao lado dela na cama. Pouco depois ela desliga a tv, dá boa noite, vira para o outro lado e finge dormir. Não conversam. Não se olham. Nem se tocam. Davi pensa no inevitável. No que não queria nem supôr. Amanhã, quando ela sair para o trabalho, vai arrumar suas coisas e ir embora. O último dia de mágica já passou há muito tempo.

 

Gabriel Protski

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Escala de Baumé 0 4880

Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Chegada 0 6417

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, prepare a casa
e meu coração pulou afora
bateu amor por toda a cidade

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Ela está vindo!

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, mas levo ainda um pouquinho
e antes de te ter em meus braços
já tenho em todos os sonhos do mundo

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Minha menina vai chegar!

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, já não falta mais tanto
e prevendo as noites com você,
me vejo em claro sonhando

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Vou ser pai