
A luz da sanduicheira acendeu, mais precisamente na cor verde. Sinal de que as torradas enfim ficaram prontas. Davi nunca gostou de jogar comida fora e sempre foi ótimo em reaproveitar alimentos. Se os pães amanhecem, viram torradas. O que acontece com certa frequência, já que Davi sempre foi péssimo em renovar o cardápio matinal. A conta é bastante simples, num dia pão e no outro torrada. Os acompanhamentos de hoje são café e manteiga, já que a margarina deixou de participar desse revezamento desde que seu primo leu numa revista que fazia mal à saúde. Também leu e ouviu de muita gente que fumar fazia mal à saúde. Mesmo assim, não consegue abandonar o hábito, pelo menos ao término de cada refeição. Sônia sempre detestou o cheiro de cigarro, por isso se tornou um assíduo usuário de creme para as mãos. Seu favorito é o de macadâmia, mesmo não sabendo se isso é uma fruta ou uma folha.
Dez e meia da manhã, já é hora de começar a se arrumar. No armário, sobrevivendo sobre um pesado cabide de madeira está seu smoking surrado, com um corte que deixou de ser elegante pelo menos uns dez anos antes de ser adquirido numa liquidação. Abriu sua caixa de gravatas, escolheu uma amarela com bolinhas coloridas. Sua favorita para trabalhar em festas infantis. Quando ingressou na vida de mágico, amava festas infantis. Mas isso foi antes do Mr. M e da internet. Hoje as crianças são tão espertas quanto sádicas, adoram gritar e revelar todos os truques que sabem, além de arremessar coisas e de humilhar velhos e empregados de uma forma geral. Se elas ainda tivessem seus sentidos retardados pelo álcool, como geralmente acontece em festas de fim de ano em empresas com gosto duvidoso, seria mais simples.
Cartola, confere. Baralho marcado, confere. Moeda para tirar de trás da orelha, confere. Pomba, confere. Lenço infinito que saí da boca, não confere. Godofredo filho da puta, o cachorro da sua cunhada deve estar cagando a porra do lenço até hoje. Sempre esquecia de repor esse artefato, é um dos únicos que sempre funciona. Bom, paciência, de qualquer forma teria que improvisar, pra dar conta das quatro horas pelas quais foi pago. Tudo cabe na sua velha maleta de couro, que é posta cuidadosamente no banco do passageiro do seu carro. Um Gol mil, ano 92. Esse sim, um mágico de primeira, já passou por cada uma que até Mandrake duvida.
O sol nasce pra todos, mas judia mais de alguns. A cama elástica, cheia de crianças se esforçando pra quebrar o pescoço, tinha que ficar na sombra. A máquina de crepes e churros também. Além dos convidados, é claro. Os guarda-sóis, todos na beira da piscina. Se Davi tivesse alguma carta na manga, já teria desmanchado com o suor. Uma tia mais animada bem que tentou, mas não conseguiu angariar uma platéia das mais vastas para o show do mágico. As três crianças presentes até se impressionaram com o truque da moeda. Mas não se sentiram muito a vontade com o show de cartas, talvez estejam acostumadas com essas figuras apenas no Ipad. Com desespero, viu uma das crianças se levantar assim que tentou, sem sucesso, fazer um truque onde a varinha colava em sua mão. Era hora de tirar um coelho da cartola, quase que literalmente. Nesse caso, uma pomba. Chamou uma das crianças restantes para ser sua assistente de palco, invocou suas palavras místicas, “Simsalabim”. Deu um leve tapa na cartola que repousava em sua cabeça, quando a tirasse de lá, a pomba teria liberdade para voar e cagar por onde bem entendesse. Dois segundos de tensão. Ao grito de “Shazam” puxa a cartola para cima. A pomba cai, morta, entre seus pés. As crianças gritam. Davi cai, quase morto, para trás. Os adultos gritam.
Sete pontos na cabeça depois, recebe alta médica. Colapso nervoso aliado a queda de pressão. A cabeça dói muito. Mas dói menos que seu ego, em frangalhos, por ter estragado uma festa que foi contratado para animar. Antes de deixar o hospital lhe entregam sua cartola, casaco, maleta e uma caixa com a pomba. Tudo se acomoda com menor zelo no banco de trás do carro, menos a caixa com a pomba, que viaja no banco do passageiro. Ela merece um enterro digno, mas não hoje. Já é tarde demais para fazer qualquer coisa boa por alguém.
Sabe-se lá onde esqueceu o controle do portão, hoje o carro dorme na rua, de novo. Abre a porta de casa e vai direto até a geladeira, puro hábito. Olha tudo, não pega nada. As roupas vão ficando pelo caminho. As pantufas estão na porta do quarto, onde Sônia vê televisão. Deve ser a novela das sete. Ou das nove, vai saber. Se cumprimentam sem nem trocar olhares. Ele deita ao lado dela na cama. Pouco depois ela desliga a tv, dá boa noite, vira para o outro lado e finge dormir. Não conversam. Não se olham. Nem se tocam. Davi pensa no inevitável. No que não queria nem supôr. Amanhã, quando ela sair para o trabalho, vai arrumar suas coisas e ir embora. O último dia de mágica já passou há muito tempo.
Gabriel Protski