
Faltavam 10 minutos para o mercado fechar quando chamaram Mikael pelo rádio. “Mika, um piá tentou se matar aqui perto da padaria. Ouviu? Vem correndo”. “Que merda”, ele pensou sem entender o contexto do que acontecia do outro lado da linha, e já abandonando a ideia de comprar cinco ou seis latas de Bohemia, em promoção na ocasião, para beber enquanto andava para casa. “Mas talvez seja essa a hora”, flagrou-se pensando, entre outros devaneios sobre a natureza das ideias e sobre o fato de que o que tem que acontecer acontece ao seu tempo, independente das vontades humanas, que não são apenas limitadas, mas também quase sempre pobres em perspectiva. Quem era ele para questionar os desígnios deste tecido que nos rege a todos?
As duplas de funcionários dos caixas 25 e 26, ambas novas no mercado, ainda não conheciam o Mika, e nem ele sabia seus nomes, mas todos notaram a pressa e a expressão grave do senhor, que se dirigia muito rápido para algum lugar longe da seção de bebidas, onde ele era mais normalmente requisitado. Parecia que ele flutuava um pouco, e não piscou quando passou por ali. Como é nas incertezas que nascem os boatos, quando não na pura má intenção, ouviu-se uma semana de burburinho entre os caixas 20 e 32 sobre essa correria, mas ninguém teve coragem de perguntar diretamente o que havia acontecido. Alguns dos contratados da loja, sobretudo os mais dados a crendices, pediram demissão depois deste episódio.
Mikael chegou na padaria e deparou-se com um péssimo cenário. De antemão, sacou o telefone e discou o número da emergência, enquanto alguns funcionários trêmulos silenciavam diante de um menino de 20 anos com o pulso esquerdo cortado, e uma faca Tramontina enorme, dessas caras, de churrasco, com seu sangue logo à sua frente. Aquela dor gerou uma barreira até que transponível, mas não desafiada pelos ali presentes. O velho segurança solicitou a presença de uma ambulância o mais rápido possível ali, no endereço tal, dando a dica fria de que “é melhor vir pela linha do biarticulado, porque hoje teve jogo, então a João Gualberto deve tar um inferno”, e sendo agradecido por isso pela menina do outro lado.
Mika aproximou-se do rapaz, que neste momento começou a chorar, e perguntou por que ele tinha feito aquilo, sendo tão novo e com tanta coisa para aproveitar. Não ouviu resposta, o que já imaginava, e pisou na faca usada para a autoimposição daquela violência, puxando-a para perto de si, longe dos olhares perdidos daquele alguém que sofria tanto. Com uns panos de prato, montou um torniquete nos braços do potencial suicida, e disse “você quebrou minha noite, piá. Mas vai ficar tudo bem. Calma agora, que você vai ficar legal. Não aqui, mas você vai”. Então pediu espaço para todos os outros. Disse que ia olhar o menino e conversar com ele enquanto a ambulância não chegava, mas que ia precisar ser alertado quando isso se desse, de forma que pediu para todo mundo correr lá para frente, que os médicos já deviam estar chegando naquela altura. O nervosismo quebra nossos mecanismos normais de raciocínio, e sendo assim ninguém questionou a orientação do senhor, e de fato todos correram para as portas do mercado, que começavam a ser fechadas. Mika então entoou algumas palavras em uma língua estranha e o corte no pulso do jovem se fechou. O velho disse “piá, daqui pra frente fodeu. Tudo vai mudar. Entendeu?”, e novamente não ouviu sequer um sussurro, mas pegou no braço bom do moleque, perguntou o nome dele, guardou na memória e disse “Então segura meu braço e não larga”. Sumiram imediatamente, mas ninguém acredita quando eu digo. Não que este seja um problema meu, claro. As câmeras desligadas da segurança também não me ajudariam a comprovar meu relato, mas minha missão aqui nunca foi a de ser acreditado, e sim de apenas continuar humildemente fazendo o que tenho que fazer.
Marco Antonio Santos