
Ao atravessar a rua, se deu conta de que aquilo não estava certo. “Não é possível!”, pensou, quase desesperado pela surpresa. Destituído da única característica que o diferenciava dos demais, Pedro Paulo acabara de se tornar apenas mais um entre os tantos a transitar pela rua XV de Novembro movimentada.
Aquele dom já tinha pelo menos uns dois anos. Num sábado à tarde chuvoso, enquanto caminhavam apressados de mãos dadas, sua ex-namorada Larissa comentou, meio sem motivo, algo que os atentou para o fato. “Engraçado, parece que o sinaleiro do pedestre sempre tá fechado quando nós estamos juntos”, disse a moça. Dito e feito: pelos próximos sete minutos, Pedro Paulo e Larissa tiveram que procurar uma marquise por semáforo, ou ficariam os dois a tomar chuva, esperando que o homenzinho verde acendesse e eles finalmente pudessem correr para o outro lado da rua.
Como viviam juntos e nunca se desgrudavam, começaram a enxergar aquilo como uma espécie de talento de casal: toda vez que tentavam atravessar alguma via de carros, pegavam o semáforo dos carros aberto e o dos pedestres fechado. Eles se divertiam com aquilo. Se sentiam especiais, ainda que soubessem que, se aquilo era realmente um talento, era uma porcaria de um talento, que os obrigava a perder tempo toda vez que saíam juntos. Não importava – eram felizes a ponto de gostar desses minutos a mais em que eram submetidos à espera, braços dados, pela abertura do sinal.
Então um dia ela partiu, deixando Pedro Paulo desnorteado. Foi também num sábado à tarde, mas dessa vez fazia sol. Larissa colocou sua última muda de roupas numa ecobag de um supermercado qualquer e se foi, definitivamente, deixando o ex-amor para trás. Ele passou, na sequência, dois dias sem conseguir sair de casa. A ausência de Larissa lhe sugava as energias necessárias para fazer qualquer coisa que não fosse ficar em casa, assistindo televisão aberta e comendo um resto de espaguete ao sugo que ela mesma havia deixado.
No terceiro dia também fazia sol, e Pedro Paulo conseguiu sair para encontrar alguns amigos. Com alegria, constatou que ainda possuía o dom: no primeiro cruzamento que encarou, o sinal de pedestres entre o lado dele e o lado aonde queria chegar estava fechado. Por certo aquilo queria dizer alguma coisa. Ele nunca soube bem se ficara alegre por poder creditar o talento apenas para si, como se aquilo lhe desse forças e demonstrasse que não precisava de Larissa para viver ou, ainda, se a existência do talento lhes mantinha conectados de alguma forma. O fato é que aquilo o acalmou, por algum tempo.
Até aquele fatídico dia no calçadão, dessa vez um domingo de manhã gelado. “Não é possível. Não pode ser!”, ele pensou, e passou alguns segundos, quase um minuto, decidindo se deveria ou não fazer o teste definitivo para tirar aquilo da cabeça. Resolveu fazê-lo: era melhor mesmo se livrar da questão de uma vez por todas.
Resoluto, arrancou da esquina da Marechal Floriano e seguiu pela XV de Novembro, sentido Praça Osório. A cada passo a ansiedade aumentava e Pedro Paulo chegou a tropeçar nos pouco mais de cem metros que separam as duas esquinas, nervoso que estava. A mais ou menos quinze passos do sinal, alento – estava fechado para pedestres. Não se apressou, pois o teste envolvia naturalidade. Ora, se corresse ou caminhasse mais devagar, ele poderia manipular para sempre o destino e a intenção não era essa. Dez passos, começa o suor nervoso de Pedro Paulo. Cinco passos, o sinaleiro fica amarelo para os carros. Um passo, a freada.
Ao finalmente pisar no meio-fio, o verde do homenzinho caminhando apareceu no sinal, superando totalmente a inércia do homenzinho vermelho, estático como Pedro Paulo naquele momento. Aquele era o fim. O pouco que lhe restava de auto reconhecimento ficara no passado. Desprovido da última fagulha de diferenciação divina que lhe havia sido concedida, aproveitou o sinal aberto e voltou a andar pela rua XV, agora como um transeunte qualquer. Desses que pegam o semáforo de pedestres aberto, eventualmente.
Rômulo Candal
Fotografia: “The Walkmen”, por Matias/cc
adorei!
“Ao finalmente pisar no meio-fio, o verde do homenzinho caminhando apareceu no sinal, deixando para trás o estático homenzinho vermelho.”
Chega um momento que não adianta mais ficar parado, tem que se vestir com sua melhor roupa verde e continuar caminhando
Muito legal menino.