Quinta-feira 0 969

Hoje o dia começou normal, mas ficou bom mesmo perto do almoço, porque eu não comia nada desde ontem, umas nove da noite. Cheguei no São Lourenço umas 11h e tinha um casal de mendigos fazendo fogo numa churrasqueira. É foda, porque daqui a pouco aparecia alguém pra encher o saco, pra mandar embora, pra bater, sei lá. Como se a gente fosse lixo, sabe? O cara, de boné e sem camisa, olhou pra mim e disse “e aí”, meio bravo. A mulher nem me olhou. Falei “opa”, porque pensei que a gente ia conversar, mas eles não queriam conversa. Abri a mochila e tirei uma farofa pronta que ganhei duma velha ali pra cima, perto da Anita Garibaldi, e o cara olhou e achou bom. Aí senti que podia chegar mais perto. Perguntei se podia sentar por ali pra me esquentar um pouco e ele disse que sim, mas sem falar, só fazendo um “uhum” meio baixinho. Ele nem me olhou na cara, mas deixou eu ficar, já olhando pra garrafa de pinga na minha mão. Ofereci pra eles, e os dois fizeram que não com a cabeça. A gente tem que ver onde entra, porque não tem como conhecer todo mundo, e aqueles dois eu não conhecia. Nem perguntei o nome deles, e eles também não perguntaram o meu. Cada bairro tem um time na rua, e eu tinha acabado de chegar ali, cansado ainda. Imagina. Fodido. O cara tirou um pote com arroz frio de algum lugar que não vi e perguntou se eu dividia a farofa com eles, porque aí eles dividiam o arroz comigo. Eu disse que sim, “pode ser”, sei lá. E aí ele me deu a tampa do pote pra comer, pra usar como prato. Nem peguei o prato de verdade, de plástico, que tenho na mochila, pra não desrespeitar ninguém. Aí abri a farofa, joguei um pouco em cima daquele arroz frio que não sei de onde veio e comecei a comer, meio virando a tampa pra dentro da minha boca. A mulher perguntou se eu tinha cigarro, e eu não tinha, aí ela fez “hmm”, e ficou na dela, comendo arroz com farofa num pedaço de caixa de papelão, virando pra boca e puxando um pouco com a mão, que nem eu, porque ninguém é mais que ninguém, e a gente lembra disso, e no fim essa é a nossa família. O povo da rua, fumador de pedra, cheirador de cola. Os brigadores, ladrões de senhoras quebram o time, mas cada um, cada um. Em casa não dá pra aguentar, aquela FAS chegando é uma bosta, e na Rui Barbosa tá sujo pra eu ficar. Sexta-feira passada comprei um gole e subi pro Largo, pra ver as meninas, mas só ver mesmo, que elas gastam R$ 8 numa cerveja e nem querem saber da gente. Nem olham de volta. Acho que eu olharia, porque eu sei como funciona. A gente sabe das coisas. Um cara que estava curtindo comigo pegou a garrafa e começou a ir embora. Quando fui correndo atrás dele, ele chamou um louco que veio não sei de onde, e eles me quebraram na porrada, de me chutar caído e pisar nas minhas costelas. Ainda bem que não quebrei nada, e alguém veio separar. Passei a noite no Hospital do Trabalhador, e quando me soltaram voltei andando pro Centro, que é longe. Foi triste. A República Argentina é uma bosta de rua, porque tem muito carro, muita calçada bonita, e é tudo meio estranho, e todo mundo anda com pressa. Playboyzada. Não é assim que eu cresci. Nunca tive nenhum amigo pros lados do Terminal do Portão, nem pro Água Verde, então só andei e andei mais. Demorei bastante, e quando cheguei na Rui Barbosa, o pessoal que eu morava disse que o cara que me bateu passou ali de madrugada e disse que se me ver deitado ali de novo, vai passar de madrugada e tacar fogo em todo mundo. Eu não quero isso. Tem criança, e o cara passa e fala uma coisa dessas. Não quero foder com ninguém, então fui embora. Um dia acho esse cara que me deixou assim, duro e com medo, e vou matar ele. Uma hora vai ser ele que vai estar doidão em algum lugar, e eu vou ficar ligeiro, rondando, olhando e esperando a hora boa, ver pra onde corro, matar ele e sumir na madrugada. Esses louquinhos assim é o que mais tem. É foda. De vez em quando um larga dessa vida e vai fazer outra coisa, sei lá o que. Deve ser coisa boa, porque a rua também é boa, quase sempre. O cara da fogueira perguntou o que aconteceu com a minha cara e a minha cabeça, que ainda tá cheia de faixa, e eu disse rápido que “dois caras me pegaram por nada”, e acho que ele não acreditou muito. Mas não perguntou mais nada também, então acho que não fazia diferença. Pra mim também não faz, na verdade. Nem o cara nem a menina falavam nada enquanto a gente comia, mas eu gostei deles. Pareciam gente boa. Quando terminamos, até dei minha farofa pra eles, que falaram “brigado” sem força, e aí fui embora pela Mateus Leme sentido BR. Tomara que eu encontre eles de novo por aí, e que eles me encontrem também, porque acho que é isso que chamam de anjo. Eles foram anjos pra mim, e eu pra eles, acho. Vai saber.

Marco Antonio Santos

Ilustração do Pietro Formenton, esse cara:
http://cargocollective.com/pietrodomiciano
https://www.behance.net/pietrodomiciano

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Escala de Baumé 0 5039

Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Vida comum parte 1 0 5187

Vida comum parte 1

Véspera de feriado, antes da meia-noite e eu já com meia garrafa de conhaque na mente. Curtia me derreter no gole, de dose, de lata, de garrafa, de todo jeito. No feriado rolou um churrascão que nem lembro se comi, dropei umas caipiras antes de acender o fogo e fiquei mais preocupado com a temperatura das garrafas que da carne. Sábado a ressaca com a mão pesada, tava batendo forte, contra-ataquei com uns latão, encostado nos fundos do posto com a rapeize, só flagrando os doidinho tirando uns racha de Parati, Chevette e Gol Chaleira. Domingo rolou rave na região metropolitana, no meio do mato, não virava ir de bonde, botei uma gasolina na Bizz e meti o pé; duas carteiras de Minister depois já tinha descido whisky com energético, vodka com suco, vários ampola, um doce e umas água colorida que os parceiro botaram, sei lá qual fita, puta gosto de remédio. Bati a nave antes da hora, cheguei em Grayskull sem nem aproveitar a viagem, ensaiava falar e não saia voz, tava tenso, me mordendo, fiquei nervoso: deu bad. Tentei endireitar a caminhada tomando umas águas, mas não rolou, a conta não batia, os dentes rangendo, coração agitado querendo se mudar do peito. Precisava voltar pra minha goma, tomar um banho, talvez dois, sei lá, só precisava vazar, montei na moto e fui. Tava com dois IPVA atrasados, cabreiro de cair numa blitz, e se soprasse um bafômetro explodia a máquina – certeza. Queria chegar logo, entrei no modo Valentino Rossi e corri a milhão, como se fosse fuga. Foi aí que deu ruim no piloto automático, se pá que dormi em cima do jato, lembro só de uns clarão, uns flash. Vi o céu por baixo, deitado no asfalto, sei lá qual fita, tudo nublado, que dia bosta. Me liguei e já tava todo remendado no hospital, numa sala com umas vinte cabeça, todo mundo fudido, uns mais outros menos. Eu? Era cabeça de chave do grupo dos desgraçados: com a lata do frankstein, olho roxo, cara inchada, nariz quebrado, uns ponto na testa. Trinquei uma costela e quebrei outras duas, a clavícula rachou e a mão tava na carne viva. O médico foi desenrolando essa lista aí e eu aceitando na moral, os pensamentos embaçados, cheio de analgésico, todo bagunçado de dor. Aí teve uma mão que ele deu uma pausa, ficou mais bolado e mandou A real: disse que eu sofri um choque cabuloso no quadril, perdi mais de 80% do fígado, que num tinha como dizer o tamanho real do estrago, mais uma fita era certa, nunca mais ia poder beber, se tomar meia lata que seja, posso encomendar o caixão. Acordei umas três vezes crente que tava tendo um pesadelo, foquei umas horas que tava numa brisa errada de doce. Mas não. A vida é uma viagem desgraçada.