
Hoje o dia começou normal, mas ficou bom mesmo perto do almoço, porque eu não comia nada desde ontem, umas nove da noite. Cheguei no São Lourenço umas 11h e tinha um casal de mendigos fazendo fogo numa churrasqueira. É foda, porque daqui a pouco aparecia alguém pra encher o saco, pra mandar embora, pra bater, sei lá. Como se a gente fosse lixo, sabe? O cara, de boné e sem camisa, olhou pra mim e disse “e aí”, meio bravo. A mulher nem me olhou. Falei “opa”, porque pensei que a gente ia conversar, mas eles não queriam conversa. Abri a mochila e tirei uma farofa pronta que ganhei duma velha ali pra cima, perto da Anita Garibaldi, e o cara olhou e achou bom. Aí senti que podia chegar mais perto. Perguntei se podia sentar por ali pra me esquentar um pouco e ele disse que sim, mas sem falar, só fazendo um “uhum” meio baixinho. Ele nem me olhou na cara, mas deixou eu ficar, já olhando pra garrafa de pinga na minha mão. Ofereci pra eles, e os dois fizeram que não com a cabeça. A gente tem que ver onde entra, porque não tem como conhecer todo mundo, e aqueles dois eu não conhecia. Nem perguntei o nome deles, e eles também não perguntaram o meu. Cada bairro tem um time na rua, e eu tinha acabado de chegar ali, cansado ainda. Imagina. Fodido. O cara tirou um pote com arroz frio de algum lugar que não vi e perguntou se eu dividia a farofa com eles, porque aí eles dividiam o arroz comigo. Eu disse que sim, “pode ser”, sei lá. E aí ele me deu a tampa do pote pra comer, pra usar como prato. Nem peguei o prato de verdade, de plástico, que tenho na mochila, pra não desrespeitar ninguém. Aí abri a farofa, joguei um pouco em cima daquele arroz frio que não sei de onde veio e comecei a comer, meio virando a tampa pra dentro da minha boca. A mulher perguntou se eu tinha cigarro, e eu não tinha, aí ela fez “hmm”, e ficou na dela, comendo arroz com farofa num pedaço de caixa de papelão, virando pra boca e puxando um pouco com a mão, que nem eu, porque ninguém é mais que ninguém, e a gente lembra disso, e no fim essa é a nossa família. O povo da rua, fumador de pedra, cheirador de cola. Os brigadores, ladrões de senhoras quebram o time, mas cada um, cada um. Em casa não dá pra aguentar, aquela FAS chegando é uma bosta, e na Rui Barbosa tá sujo pra eu ficar. Sexta-feira passada comprei um gole e subi pro Largo, pra ver as meninas, mas só ver mesmo, que elas gastam R$ 8 numa cerveja e nem querem saber da gente. Nem olham de volta. Acho que eu olharia, porque eu sei como funciona. A gente sabe das coisas. Um cara que estava curtindo comigo pegou a garrafa e começou a ir embora. Quando fui correndo atrás dele, ele chamou um louco que veio não sei de onde, e eles me quebraram na porrada, de me chutar caído e pisar nas minhas costelas. Ainda bem que não quebrei nada, e alguém veio separar. Passei a noite no Hospital do Trabalhador, e quando me soltaram voltei andando pro Centro, que é longe. Foi triste. A República Argentina é uma bosta de rua, porque tem muito carro, muita calçada bonita, e é tudo meio estranho, e todo mundo anda com pressa. Playboyzada. Não é assim que eu cresci. Nunca tive nenhum amigo pros lados do Terminal do Portão, nem pro Água Verde, então só andei e andei mais. Demorei bastante, e quando cheguei na Rui Barbosa, o pessoal que eu morava disse que o cara que me bateu passou ali de madrugada e disse que se me ver deitado ali de novo, vai passar de madrugada e tacar fogo em todo mundo. Eu não quero isso. Tem criança, e o cara passa e fala uma coisa dessas. Não quero foder com ninguém, então fui embora. Um dia acho esse cara que me deixou assim, duro e com medo, e vou matar ele. Uma hora vai ser ele que vai estar doidão em algum lugar, e eu vou ficar ligeiro, rondando, olhando e esperando a hora boa, ver pra onde corro, matar ele e sumir na madrugada. Esses louquinhos assim é o que mais tem. É foda. De vez em quando um larga dessa vida e vai fazer outra coisa, sei lá o que. Deve ser coisa boa, porque a rua também é boa, quase sempre. O cara da fogueira perguntou o que aconteceu com a minha cara e a minha cabeça, que ainda tá cheia de faixa, e eu disse rápido que “dois caras me pegaram por nada”, e acho que ele não acreditou muito. Mas não perguntou mais nada também, então acho que não fazia diferença. Pra mim também não faz, na verdade. Nem o cara nem a menina falavam nada enquanto a gente comia, mas eu gostei deles. Pareciam gente boa. Quando terminamos, até dei minha farofa pra eles, que falaram “brigado” sem força, e aí fui embora pela Mateus Leme sentido BR. Tomara que eu encontre eles de novo por aí, e que eles me encontrem também, porque acho que é isso que chamam de anjo. Eles foram anjos pra mim, e eu pra eles, acho. Vai saber.
Marco Antonio Santos
Ilustração do Pietro Formenton, esse cara:
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