
Semana passada estive em Paraty e lembrei de você. Acho mesmo que você iria adorar a sacada do quarto de pousada que peguei. De frente para o mar, mais ou menos perto daquela rua da igreja da Nossa Senhora dos Remédios. Se lembra? Só que do lado de lá da ponte. Engraçado, há muito você não aparecia tão vívido nas minhas memórias. Já tinha alguns meses, na verdade. Dessa vez, ao acordar de madrugada, eu praticamente pude sentir seu cheiro no outro travesseiro da cama de casal que peguei só pra mim.
Ultimamente têm acontecido algumas coisas esquisitas. Igual acontecia com você. Nunca esqueço de quando andávamos por uma viela dessa mesma Paraty e o lampião fluorescente apagou ao passarmos por baixo. “Sou eu”, você afirmou, calmo. “Eu atraio essas coisas”. Fiquei confusa, mas logo em seguida a próxima lâmpada também apagou e eu desisti de duvidar. A humanidade tem dessas coisas: a gente é cético até o momento em que essas coisinhas atravessam nossos caminhos. Nessas horas, todo mundo acredita em algo. Alguns até fazem o sinal da cruz, mas eu não chegava a esse ponto, porque me sentia segura com você do lado. Eu acreditava era em você.
Nesses últimos seis meses, desde que você se foi, várias dessas loucuras se me apresentaram. Já acordei com a chaleira apitando sem ter colocado água pra ferver, um pombo bateu na janela do quarto e caiu morto, e a Fafá já não entra na casinha nem por decreto. Ah, e o telefone aqui de casa deu pra tocar toda noite depois das onze e é sempre engano. Sempre números e nomes diferentes. Claro que eu sei que tudo pode ser uma sucessão de coincidências, somada às sinapses cada vez mais aleatórias que meu cérebro anda fazendo. Eu sei disso.
Mas prefiro pensar que é algo que você deixou comigo. Uma espécie de herança, ainda que passe longe de uma herança pela qual eu tenha pedido. Como naquele caso da avó que deixou pro neto uma cadeira de balanço que a família inteira queria, menos ele – ele detestava aquela cadeira, detestava o rangido que ela produzia. Quero dizer, talvez você pudesse ter deixado esse ímã esquisito com outra pessoa que não eu. Alguém que aproveitasse melhor. Mas agradeço honestamente, visto que é uma das poucas coisas que você me deixou.
Lá em Paraty, na noite que lembrei de você, eu acordei com o barulho da sua caneta caindo da cômoda ao lado da cama. Sua caneta preta, da ponta fina e porosa, que eu nem lembrava de ter levado. O fato é que sigo cética, até o momento em que essas coisinhas atravessam meus caminhos. Mas hoje em dia, confesso, eu até faço o sinal da cruz.
Rômulo Candal
Fotografia: “Rua da Matriz”, por Luciano Osorio./cc