Trinta reais 0 788

Meu caro frentista, muito obrigado por me auxiliar a chegar à Rua Sabóia ontem. Estava chovendo uma anormalidade e eu jamais encontraria aquele lugar sozinho. Aliás, foi uma boa festa. Quando abri a porta tinha uma ruiva de calça de ginástica dançando freneticamente com uma loira de olhos verdes, um pouquinho mais expansiva de traços físicos, mas muito bonita. E foi bonito de se ver. Também tinha uma moça de Manaus, simpática. Porém, o chá de Trepadeira Elefante não lhe caiu muito bem.

Meu caro frentista, ontem à noite, antes da festinha que tinha uma ruiva, uma loira, uma manauara, um cachorro chamado Ciclope e um cara que usava rotineiramente a palavra transão, abasteci trinta reais em seu posto de combustível. O meu cartão não passou, como você bem lembra. Eu estava sem dinheiro e você teve que ficar com o pneu reserva do carro, o que me chateou um pouco. De todo modo, muito obrigado pela consideração e paciência com a minha condição. Daqui a pouco te pago o que devo. Acabei de receber de um comércio que me devia cem reais. Estou bem, estou todo transão.

Meu caro frentista, acabei de tomar um café com a diagramadora do jornal, por sinal, uma bela moça. Ela está lendo “Grande Sertão: Veredas” e calhei de lhe contar o final do livro. Espero que você não se chateie. Riobaldo morre ao cair acidentalmente de um canyon, mas volta três dias depois para limpar o nome da família (do SERASA) e se vingar de Diadorim, uma espiã comunista que os sovietes mandaram para descobrir se Riobaldo é ou não transão.

Meu caro frentista, eu me esqueço de senhas. Até pensei em te dar essa desculpa ontem, mas achei o recurso argumentativo da falta de dinheiro muito mais convincente. Também me esqueço de livros lidos, filmes antigos e ex-mulheres (duas). Mas não me esqueço da história da amiga traída pela mãe através do Tinder. Foi tudo muito lúdico – onde fica, neste caso, a lógica de que se organizar direitinho todo mundo transa?

Meu caro frentista, aconteceu uma situação que preciso te dizer, não porque você precise saber, mas é que preciso contar. Eu tinha os trinta reais. Na verdade, eu tinha cinquenta. Mas não podia te pagar. Eu sabia que não iria te pagar. Sabia que não passava cartão. As moças lá da festa contrataram uma stripper porque era aniversário de uma delas – e ela queria uma stripper na festa, o que me pareceu muito justo. Contudo, ficou combinado que iríamos dividir os custos todos, algo em torno de quarenta reais pra cada um, com direito a atendimento exclusivo aos financiadores. A stripper se chamava Samara e era uma japonesa de derrubar o firmamento, o que muito me surpreendeu também, já que ela não era japonesa de trajetória familiar – descobri depois – e derrubar o firmamento não é uma grande metáfora, mas uso-a com frequência. Enquanto ela sentava em meu colo, confesso ter ficado um pouco mal de ter mentido pra você. Contudo, ela começou a rebolar e perguntou se eu estava de pau duro. Aí considerei que não seria lúdico dizer que sim por estar pensando em você, ela tinha voz doce, tomava um licor de cereja e disse-me que eu parecia ser uma pessoa feliz e muito bem amada. Ela não me afirmou isso, mas bem que podia, pois raramente ouço isso e busco bem direcionar todo o amor que sinto. Nem busco.

Sim. Era japonesa e muito bonita e se chamava Samara. Quanto te devo mesmo?

 

por Daniel Zanella

foto de Ricardo Pozzo

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Escala de Baumé 0 5039

Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Chegada 0 6539

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, prepare a casa
e meu coração pulou afora
bateu amor por toda a cidade

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Ela está vindo!

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, mas levo ainda um pouquinho
e antes de te ter em meus braços
já tenho em todos os sonhos do mundo

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Minha menina vai chegar!

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, já não falta mais tanto
e prevendo as noites com você,
me vejo em claro sonhando

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Vou ser pai