Quando o senhor Emílio não estava na sala de estar, sozinho, ouvindo rádio, ele provavelmente estava em alguma parte do seguinte trajeto: Emílio saía de seu apartamento, descia dois lances de escadas e ganhava as ruas. Na segunda esquina, numa casa de tijolinhos à vista, tinha um amontoado de mudas mal-cuidadas, daonde ele furtava uma flor e ia até a padaria da quarta esquina fazer sua compra de sempre. Nicole, a sorridente balconista, o atendia. A moça lhe lembrava sua neta. “O de sempre, senhor Emílio?”, ela perguntava. “O de sempre, minha flor”, ele respondia, enquanto devolvia o sorriso e lhe entregava a flor que roubara. Uma flor para outra flor, ele pensava. Ela sorria mais, aceitava o presente e sumia na portinhola da cozinha, para providenciar os dois pães franceses e as duas cuecas viradas do cliente.
O tempo já havia feito algum estrago no velho Emílio. Além das dores, no ciático e nos joelhos, e das muitas internações por conta do coração frágil, os anos de vida já lhe haviam carcomido um tanto da memória. Dos graves aos menores, um dos esquecimentos mais constantes na vida do senhor Emílio era o dinheiro para pagar a comprinha da padaria. Nicole não ligava. Já tinha se acostumado, e a presença dele a alegrava. “Pendura essa pra mim, querida? Amanhã eu pago”, ele dizia, e ela aceitava, “É claro, senhor Emílio, não se preocupa não”, e a vida seguia porque aqueles dois pães e duas cuecas viradas não faziam diferença pra ninguém, nem pra dona da padaria. Nicole não pendurava coisa nenhuma, porque no dia seguinte o senhor Emílio também não lembraria de pagar, e ela sabia que o esquecimento não era má-fé. Era velhinho, tadinho, e tão bom.
As visitas terminavam sempre com a clássica pergunta, “E os namorados, menina?”, que fazia para constrangê-la, propositadamente, como fazia com a neta em outros tempos. Ela só respondia “Ih, senhor Emílio, tá difícil, viu?”, enquanto se ria demoradamente. E o velhinho terminava com um “Ah, mas esses moços de hoje em dia…”, enquanto se retirava e desejava dias melhores para Nicole e seus amores. A delicadeza e a simpatia da jovem o revigoravam. Fazia o caminho de volta, largava o saco com as cuecas viradas na mesinha perto da poltrona, ia à cozinha preparar seus pães com requeijão e voltava à sala, sozinho, ouvir rádio.
Num dia tal, de muito sol, o senhor Emílio saiu de seu apartamento, desceu as escadas, ganhou as ruas, roubou uma flor e foi fazer sua comprinha de padaria, mas não encontrou Nicole. Outra moça, mais nova e muito menos gentil, estava em seu lugar. “O que o senhor vai querer?”, ela perguntou. “Eu vou querer… Dois pãezinhos e um sonho de nata, por favor, minha flor”, disse o senhor Emílio, errando o pedido de sempre, sorrindo enquanto estendia o botão de flor à moça. Ela resmungou qualquer coisa, pegou a flor e atravessou a portinhola. Jogou o presente numa lixeira logo após a entrada da cozinha; Emílio viu e entristeceu. Ela voltou, entregou o pedido ao velho, “Ficou dois e oitenta”, disse. E esperou.
O senhor Emílio enfiou a mão no bolso direito, depois no esquerdo, depois no bolso do colete de lã, depois no de trás da calça, em vão. “Poxa, acho que esqueci o dinheiro”, ele disse, sorrindo envergonhado, “você faria a gentileza de pendurar a conta para mim, querida?”, ele pediu. “Não posso”, ela respondeu, puxando bruscamente o saco da mão do homem. “Sem dinheiro, sem pão e sem sonho”, ela completou, ríspida.
O velhinho se desculpou muito mais do que deveria e saiu, severamente abalado. O último refúgio de carinho e acolhimento que o senhor Emílio possuía se transformara num poço de antipatia e desconforto. Emílio cambaleou, desconcertado, durante as quatro quadras entre a panificadora e o prédio, cambaleou pelos dois lances de escada. Entrou na sala do apartamento, trancou a porta, ligou o rádio e sentou-se na poltrona, sempre sozinho.
Nicole retornou da folga, tomando novamente o cargo de balconista, ocupado, na última semana, por sua prima mais nova. Foi a primeira e única a dar falta do velho homem. Após três dias do retorno da moça, senhor Emílio foi encontrado, sem vida, sentado. O rádio ainda ligado.
por Rômulo Candal
ilustração: Gustavo Paris
🙂
bueníssimo.