
Nesta cidade, o clima é especialmente volátil. Olhei pela janela do banheiro e vi que o dia tinha amanhecido nublado. Pelo menos não estava chovendo e minha ida ao trabalho em cima da moto ia ser menos difícil. Restava só passar no posto e colocar cinco reais de gasolina que ficaria tudo bem. Escovei os dentes ainda durante o banho, sequei-me, coloquei uniforme e por cima uma roupa de plástico (porque, como disse, nesta cidade não se confia no que se vê pela janela, às sete da manhã). Na garagem do conjunto de quitinetes, em que moro sozinha há uns meses, caminhei até minha moto e coloquei a mochila no bauleto, montei e dei a partida. O painel continua queimado, não marca a velocidade nem o volume de combustível, está assim faz algum tempo. Tenho pilotado desorientada, confiando apenas na minha parca noção espacial.
Eu sou assim mesmo, esquecida e um pouco destrambelhada. Já perdi cinco celulares (e eu nunca fui de atender telefone mesmo, quer falar comigo, passa na minha casa ou me manda uma mensagem no Facebook que eu respondo na sequência), tenho umas cicatrizes nas pernas de encostar no escapamento da moto (às vezes não lembro que ainda está quente), costumo dormir no sofá e acordo toda torta no meio da madrugada com a televisão ligada e o que sobrou do jantar em cima da mesa em vez de estar na geladeira para não estragar; e por ai vai a minha lista de pequenos flagelos causados pelo esquecimento. Só não esqueço de dar comida para a minha gata e de ligar para o meu namorado no fim da tarde, luto para conseguir manter pelo menos estas duas coisas em dia (se não o gato morre, se não meu amor esfria).
Moro sozinha desde os 19 anos, quando arrumei emprego em um salão de exposições de arte. Trabalho como guia para os visitantes e dou uma mão na hora de catalogar as obras. Comecei fazendo estágio obrigatório para a universidade e achava que não ia me dar bem. Nunca gostei de falar com as pessoas, sempre me senti feliz com minha solidão. Mas fui quebrando esses muros aos poucos e com o tempo descobri uma técnica para falar em público: só imaginar que eu estou num palco com fresneis gigantes apontados para mim e a luz intensa que produzem ofusca meus olhos e eu não posso enxergar a multidão em minha frente. É como estar em um estúdio gravando meu espetáculo sozinha. Então as mini palestras sobre as obras de arte ficam fáceis de serem dadas.
Com a vida amorosa não foi difícil também. Eu e Marcel nos amamos (eu acho pelo menos), mas cada um leva a vida sem se intrometer muito na do outro. Nos vemos aos finais de semana e as vezes na quarta ou na quinta à noite. Ele gosta de conversar pouco e geralmente assistimos algum filme, saímos para caminhar, bebemos vinho , suco de laranja (que ele adora, diz que vitamina C é boa para quem se expõe ao vento todos os dias, como eu na moto e ele na bicicleta, não te contei que ele não tem carro? É verdade, ele só anda de bicicleta, mesmo com chuva e não come carne também, é professor de letras e mora sozinho em casa no Centro; escreve poemas lindos e pinta quadros realistas que um dia vão valer muito dinheiro, ele faz fotos dos quadros e publica em um blog, depois te passo o link).
Achei que estava tudo bem viver desse jeito, mas esses dias ele me levou para jantar em um restaurante no topo de um prédio, de onde dava para ver a cidade inteira e disse que me amava muito e que achava que já estava na hora de a gente se casar. Eu gosto da presença dele mas não conseguia imaginar um motivo plausível para vivermos na mesma casa e dividirmos os dias juntos. Quem disse que havíamos sido feitos um para o outro? Para mim, essa história de casal era apenas uma fraqueza mal resolvida do ser humano, um desespero pasteurizado, uma solução paliativa para camuflar a verdade universal de que todos estamos solitários neste mundo, que iremos partir sozinhos. Não importa o quanto você esteja rodeado de pessoas, no fim estará a sós com sua consciência, nada mais. Tive de responder para Marcel que não estava preparada para casar e que talvez isso nunca fosse acontecer. Ele deu um meio sorriso e disse “tudo bem”, que poderíamos ficar juntos mesmo vivendo em casas separadas. Ele nunca mais tocou no assunto e eu também não. Na verdade nem pensei mais nisso, imagino que foi um devaneio qualquer dele, que talvez não estivesse falando sério.
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Hoje de manhã, depois que deixei a garagem e cruzei a ponte sobre o rio que passa na esquina de casa, vi ao longe, no meio da quadra seguinte, o corpo de um pássaro esmagado. Provavelmente algum motorista despercebido o tinha atropelado. Caía uma garoa fina e a viseira do capacete ficou cheia de gotinhas rapidamente. Mesmo assim, vi que ao lado do corpo do pássaro atropelado havia outro pássaro da mesma raça, acho que eram sabiás porque meu vizinho sempre diz que nas árvores perto do rio vive uma comunidade grande de animais desta espécie. “Peito laranja. Costas, asas e cabeça cinzentas. Parecem lordes holandeses vestindo coletes da cor da realeza, com um longo casaco para o frio cobrindo o resto do corpo. Preparados para o clima da cidade”. O sabiá que estava vivo parecia olhar fixamente para o corpo do que havia morrido. Não dava para saber se eram dois machos, duas fêmeas ou um casal porque os sabiás não apresentam evidentes diferenças corporais de gênero. O pássaro vivo parecia ter sido empalhado. Era como se ele tivesse sido colocado na estante de um museu de história natural. Não se mexia e contemplava o cadáver do semelhante, expondo as vísceras no asfalto molhado. Pensei em passar com a moto bem perto para ver qual seria a reação e quase cai tentando desviar dele. Cheguei tão perto que estava prestes a atropelá-lo, mesmo assim ele não se moveu um centímetro que fosse. Segui alguns metros, ainda assustada pela quase queda e parei a moto perto da calçada. Desci, tirei o capacete e depois de esfregar as mãos nos olhos os foquei no pássaro, que continuava parado, observando o cadáver. Resolvi seguir para o trabalho e tentei não pensar naqueles pássaros. Realmente os esqueci, mas agora pouco, quando voltava para casa, quase não acreditei nos meus olhos de novo. Em vez de um, dois pássaros estavam esmagados no meio da rua, a poucos metros da ponte. Inacreditável! Não tive dúvida de que o primeiro havia sido atropelado por acidente e o segundo, cometido suicídio. Tentei não ficar procurando uma explicação, mas ela parecia mais evidente do que eu podia suportar.
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Amanhã vou consertar o painel da moto. Tomara que não amanheça chovendo. Tomara que os carros andem mais devagar. Tomara que o Marcel venha dormir aqui, queria contar essa história para ele. Queria que ele trouxesse algo pra gente jantar.
Por Jadson André
Ilustração: Caroline Rehbein