Pássaros 0 759

Nesta cidade, o clima é especialmente volátil. Olhei pela janela do banheiro e vi que o dia tinha amanhecido nublado. Pelo menos não estava chovendo e minha ida ao trabalho em cima da moto ia ser menos difícil. Restava só passar no posto e colocar cinco reais de gasolina que ficaria tudo bem. Escovei os dentes ainda durante o banho, sequei-me, coloquei uniforme e por cima uma roupa de plástico (porque, como disse, nesta cidade não se confia no que se vê pela janela, às sete da manhã). Na garagem do conjunto de quitinetes, em que moro sozinha há uns meses, caminhei até minha moto e coloquei a mochila no bauleto, montei e dei a partida. O painel continua queimado, não marca a velocidade nem o volume de combustível, está assim faz algum tempo. Tenho pilotado desorientada, confiando apenas na minha parca noção espacial.

Eu sou assim mesmo, esquecida e um pouco destrambelhada. Já perdi cinco celulares (e eu nunca fui de atender telefone mesmo, quer falar comigo, passa na minha casa ou me manda uma mensagem no Facebook que eu respondo na sequência), tenho umas cicatrizes nas pernas de encostar no escapamento da moto (às vezes não lembro que ainda está quente), costumo dormir no sofá e acordo toda torta no meio da madrugada com a televisão ligada e o que sobrou do jantar em cima da mesa em vez de estar na geladeira para não estragar; e por ai vai a minha lista de pequenos flagelos causados pelo esquecimento. Só não esqueço de dar comida para a minha gata e de ligar para o meu namorado no fim da tarde, luto para conseguir manter pelo menos estas duas coisas em dia (se não o gato morre, se não meu amor esfria).

Moro sozinha desde os 19 anos, quando arrumei emprego em um salão de exposições de arte. Trabalho como guia para os visitantes e dou uma mão na hora de catalogar as obras. Comecei fazendo estágio obrigatório para a universidade e achava que não ia me dar bem. Nunca gostei de falar com as pessoas, sempre me senti feliz com minha solidão. Mas fui quebrando esses muros aos poucos e com o tempo descobri uma técnica para falar em público: só imaginar que eu estou num palco com fresneis gigantes apontados para mim e a luz intensa que produzem ofusca meus olhos e eu não posso enxergar a multidão em minha frente. É como estar em um estúdio gravando meu espetáculo sozinha. Então as mini palestras sobre as obras de arte ficam fáceis de serem dadas.

Com a vida amorosa não foi difícil também. Eu e Marcel nos amamos (eu acho pelo menos), mas cada um leva a vida sem se intrometer muito na do outro. Nos vemos aos finais de semana e as vezes na quarta ou na quinta à noite. Ele gosta de conversar pouco e geralmente assistimos algum filme, saímos para caminhar, bebemos vinho , suco de laranja (que ele adora, diz que vitamina C é boa para quem se expõe ao vento todos os dias, como eu na moto e ele na bicicleta, não te contei que ele não tem carro? É verdade, ele só anda de bicicleta, mesmo com chuva e não come carne também, é professor de letras e mora sozinho em casa no Centro; escreve poemas lindos e pinta quadros realistas que um dia vão valer muito dinheiro, ele faz fotos dos quadros e publica em um blog, depois te passo o link).

Achei que estava tudo bem viver desse jeito, mas esses dias ele me levou para jantar em um restaurante no topo de um prédio, de onde dava para ver a cidade inteira e disse que me amava muito e que achava que já estava na hora de a gente se casar. Eu gosto da presença dele mas não conseguia imaginar um motivo plausível para vivermos na mesma casa e dividirmos os dias juntos. Quem disse que havíamos sido feitos um para o outro? Para mim, essa história de casal era apenas uma fraqueza mal resolvida do ser humano, um desespero pasteurizado, uma solução paliativa para camuflar a verdade universal de que todos estamos solitários neste mundo, que iremos partir sozinhos. Não importa o quanto você esteja rodeado de pessoas, no fim estará a sós com sua consciência, nada mais. Tive de responder para Marcel que não estava preparada para casar e que talvez isso nunca fosse acontecer. Ele deu um meio sorriso e disse “tudo bem”, que poderíamos ficar juntos mesmo vivendo em casas separadas. Ele nunca mais tocou no assunto e eu também não. Na verdade nem pensei mais nisso, imagino que foi um devaneio qualquer dele, que talvez não estivesse falando sério.

***

Hoje de manhã, depois que deixei a garagem e cruzei a ponte sobre o rio que passa na esquina de casa, vi ao longe, no meio da quadra seguinte, o corpo de um pássaro esmagado. Provavelmente algum motorista despercebido o tinha atropelado. Caía uma garoa fina e a viseira do capacete ficou cheia de gotinhas rapidamente. Mesmo assim, vi que ao lado do corpo do pássaro atropelado havia outro pássaro da mesma raça, acho que eram sabiás porque meu vizinho sempre diz que nas árvores perto do rio vive uma comunidade grande de animais desta espécie. “Peito laranja. Costas, asas e cabeça cinzentas. Parecem lordes holandeses vestindo coletes da cor da realeza, com um longo casaco para o frio cobrindo o resto do corpo. Preparados para o clima da cidade”. O sabiá que estava vivo parecia olhar fixamente para o corpo do que havia morrido. Não dava para saber se eram dois machos, duas fêmeas ou um casal porque os sabiás não apresentam evidentes diferenças corporais de gênero. O pássaro vivo parecia ter sido empalhado. Era como se ele tivesse sido colocado na estante de um museu de história natural. Não se mexia e contemplava o cadáver do semelhante, expondo as vísceras no asfalto molhado. Pensei em passar com a moto bem perto para ver qual seria a reação e quase cai tentando desviar dele. Cheguei tão perto que estava prestes a atropelá-lo, mesmo assim ele não se moveu um centímetro que fosse. Segui alguns metros, ainda assustada pela quase queda e parei a moto perto da calçada. Desci, tirei o capacete e depois de esfregar as mãos nos olhos os foquei no pássaro, que continuava parado, observando o cadáver. Resolvi seguir para o trabalho e tentei não pensar naqueles pássaros. Realmente os esqueci, mas agora pouco, quando voltava para casa, quase não acreditei nos meus olhos de novo. Em vez de um, dois pássaros estavam esmagados no meio da rua, a poucos metros da ponte. Inacreditável! Não tive dúvida de que o primeiro havia sido atropelado por acidente e o segundo, cometido suicídio. Tentei não ficar procurando uma explicação, mas ela parecia mais evidente do que eu podia suportar.

***

Amanhã vou consertar o painel da moto. Tomara que não amanheça chovendo. Tomara que os carros andem mais devagar. Tomara que o Marcel venha dormir aqui, queria contar essa história para ele. Queria que ele trouxesse algo pra gente jantar.

 

Por Jadson André
Ilustração: Caroline Rehbein

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Frio de matar Mendigo 0 3246

Estamos na copa de 2018, no Brasil, uma manhã chuvosa e um frio de matar mendigo, enfim, o descrito se consumou, estava indo até o posto próximo a minha casa e para chegar até o posto eu tinha que passar por uma trincheira, estava eu, fumando meu cigarrinho, eram exatamente 6:48 da manhã, quando, começo escutar um som de um violão e uma voz meio rouca, com soluços e demonstrando um tanto de álcool no sangue do seu portador, cantando o seguinte refrão:

– um toque de bola

– é nossa escola

– nossa maior ambição

– estou nas trincheiras

– Minha companheira pro frio, não resistiu

– enfim, esse é nosso Brasil

Em seu violão de apenas 3 cordas, esse mendigo, parecia ser o melhor no que fazia, chegando mais perto, percebi que ao seu lado, havia um corpo, enrolado em uma coberta, creio eu, que a única coberta que existia para eles dois, então, decidi parar e perguntar a ele o que havia acontecido, claro, que, eu já tinha uma certa noção do que tinha se passado, afinal, como disse no começo, estávamos na época em que o frio avassalador das cidades do Sul matavam mendigos.

– Olá meu amigo, desculpa lhe interromper, mas será que eu posso lhe ajudar de alguma forma?

– Olá meu senhor, eu não quer ser grosso com o senhor, mas, você só poderá me ajudar se tiver uma forma de voltar no tempo, você consegue?

– Pouts, infelizmente eu não consigo te ajudar desta forma, mas, me conte o que realmente aconteceu e vejo como posso te ajudar.

– Então senhor, essa é a resposta que eu estou acostumado a ouvir todos os dias, me perdoe, qual é seu nome?

– Meu nome é Roberto, amigo, e o seu qual é?

– Então seu Roberto, eu já não consigo lembrar meu nome, pois, de tão acostumado que estou em ouvir as pessoas me chamarem de mendigo, vagabundo, sem vergonha e ladrão, acabei que esqueci o meu nome verdadeiro, mas, se quiser, pode me chamar Zé, afinal, sou um Zé ninguém.

Nesse momento, eu fiquei sem palavras, por pelo menos uns 2 minutos, olhando para aquele mendigo que estava desacreditado totalmente da vida e de sua existência e claro, não conseguia deixar de olhar para aquilo enrolado no coberto, que parecia realmente um corpo, quando consegui voltar daquele “transe” eu criei coragem e perguntei.

– Então, não vou lhe chamar de Zé, pois, pra mim, você não é um Zé ninguém, irei lhe chamar de amigo, até que você consiga lembrar o seu nome e queira me falar, até lá, me perdoe, você pode me dizer quem está deitado aí do seu lado? Aquilo que você estava cantando realmente aconteceu?

– HAHAHAHA, Senhor Roberto, o senhor é engraçado, nunca, desde que eu perdi tudo, ninguém parou para me ouvir por mais de 1 minuto e agora você me aparece querendo conversar comigo, olha, eu não sou de falar meu nome para os outros, afinal, ninguém se preocupou em perguntar, eu não esqueci meu nome não, como você me parece ser alguém legal, meu nome é Heitor, a, em relação ao que você me perguntou sobre o que estava cantando, sim, é verdade.

Mais alguns minutos de silêncio, pois, foi a primeira vez que eu vi o fato consumado de algo que eu sempre ouvi falar.

– Heitor, poxa, que nome forte meu amigo, fico infeliz pelo que aconteceu, mas, quem de fato era essa pessoa que estava lhe acompanhando?

– Então, essa pessoa que estava me acompanhando, desde que perdi tudo é alguém que eu encontrei nas ruas meu nobre, é a única pessoa que me ofereceu metade da comida que ela tinha, metade do cobertor, metade da bebida, metade do dinheiro e o seu coração, ela, enxergou em mim o que mais ninguém da minha “família” conseguiu enxergar, logo que perdi todo o dinheiro que eu tinha, o emprego, eu fui expulso de casa, com uma mão na frente e outra atrás, eu não gosto de lembra dessa época, então, vou para de falar por aqui e agora, sabe aquele pergunta que o senhor me fez? Sobre me ajudar de alguma forma? O Senhor pode sim, me faz o favor de ligar para alguém e pedir para vir aqui e outro favor que lhe peço, de coração, me deixe sozinho com a minha amada, preciso me despedir, por favor, vá, sem falar uma palavra e nem sequer olha para trás, pois, nos dias em que eu precisava, foi exatamente o você e milhares de pessoas fizeram, um forte abraço e reflita.

Eu já não queria mais importunar o Heitor, porém, peguei uns trocados do meu bolso, como um sinal de rendição por todas as vezes que o ignorei e coloquei ao lado do corpo enrolado na coberta, voltei a acender o meu cigarro que havia apagado por falta de tragadas, não olhei para ele, nem para o corpo e apertei o passo em direção ao posto, comprei mais uma carteira de cigarro, uma bebidas e voltei pelo mesmo caminho, desta vez, preferi atravessar a rua, desde então, nunca mais o vi.

Texto: Giovane Santos
Ilustração: Helton de Prado Carvalho

O estranho caso da sommelière de lágrimas 1 3519

Por Mariana Porto

 

No dia em que nosso amor morreria, você me trouxe um vinho de qualidade questionável e disse “isso é pra você aprender que a vida pode te surpreender”. Na hora, juro que fiquei inicialmente sem entender, já que o fato do vinho ser meio agressivo eu já esperava. No entanto, confesso que isso jamais tinha sido um problema em nossa relação.

Sem medo de parecer clichê, posso dizer que seus beijos sempre harmonizaram tão bem, e que sua boca me preenchia com tanta delicadeza, que mesmo se eu tivesse acabado de tomar uma dose da pior cachaça da praça, ainda assim, me desceria com o frescor mais equilibrado que já provei.

Mas, naquele dia, eu senti tudo como um grande coice, de uma brutalidade que foi realmente inesperada. Você segurou meu rosto, se despediu, e me deu um beijo seco. Sua mão estava suada, mas entendo que também não deve ter sido fácil pra você — tanto me dizer adeus, quanto tomar aquele vinho ruim.

Você saiu e bateu a porta, me deixou e deixou aquela garrafa que, no fim, fiz questão de guardar como souvenir, só pra lembrar do azedume que nosso amor se tornou. Serviu também para não esquecer de que você me largou ali, sozinha, e tomando aquele vinho vagabundo diluído em uma tristeza profunda. “Sommelière de lágrimas”, é um título eu ostento até hoje por sua causa.

Mas, sendo bem sincera, admito que eu guardo essa garrafa vergonhosa principalmente como uma artimanha pra tentar me impedir de sentir saudades. Essa saudade de quando eu poderia me embriagar inteira de você, e ainda me manter de pé. Feliz. Com a boca preenchida, com o frescor do amor novo. Porque eu sinto sim saudades. Todos os dias. Desde o dia que nosso amor pareceu que morreu.

“Oh you are in my blood like holy wine
You taste so bitter
And so sweet oh
I could drink a case of you darling and I would
Still be on my feet
Oh I would still be on my feet”