
O inverno chegou e a geada fez a primeira manhã branca do ano. Celebramos, cada qual à sua maneira. Uns felizes, de cachecol e luvas, outros maldizendo a vida além das cobertas na cama. O maltrapilho a dormir pra sempre na praça da esquina não era ninguém.
A fumaça da respiração no frio é diversão na infância e desespero para quem cresce. Desenhar no vidro embaçado é mágico para os pequenos e prelúdio de sujeira para quem perde a criança de si.
A vida ganha detalhes nos primeiros dias de algo novo, mas neste ano o inverno chegou trazendo consigo um fim.
O maltrapilho que ninguém celebrou não sonhou esta noite. Sequer adormeceu. Quando amanheceu, não estava mais lá. Não chegou a ver a fina camada de gelo sobre seu nariz. Seus lábios roxos que não diriam nada.
Não bocejaria com os três ou quatro dentes amarelos entre os pelos brancos ao redor da boca. O corpo pequenino, com os pés descalços além da fina coberta já não era ele. A partir de hoje seria silêncio. Assim como parte de mim agora.
João, Pedro, Epaminondas, jamais saberei seu nome. Indigente da minha memória. Companheiro de todas as manhãs, de Infinitos e impessoais bons dias sem sequer um como vai você, quem é você.
Pela primeira vez prestaram atenção na sua existência. Precisou deixar de ser para existir. Era um incômodo. Estragou as vendas na banca de revistas, espantou a freguesia do ponto de táxis. Tudo parou pela manhã.
Na floricultura do outro lado da praça, algumas flores chegaram a ser vendidas. Nenhuma era pra ele.
As listras pretas e amarelas interditavam o local e eram mais presentes do que o homenzinho gelado a ser recolhido por outros dois.
Para ele restou o abraço gelado de uma gaveta que lhe seria a última cama antes de ser coberto pela terra que nos engole. Talvez mais quente e confortável do que o chão da praça que lhe serviu de lar nos últimos tempos.
Ele já não está mais lá e acho triste. O inverno levou o único sorriso das primeiras horas dos meus dias.
Da praça caminhei até o trabalho, cruzando com olhares que desviavam em um tempo impossível de se precisar.
Oito quarteirões e três lances de escadas depois, sento à minha mesa burocrática e alimento o hábito invernal de embaçar as lentes dos óculos com o vapor da caneca cheia de café.
O sol lá fora, visto aqui, faz o dia parecer mais quente, mas o vento que agita as árvores é o mesmo que corta a alma com seu gelo.
O branco já é água e todos seguem sorrisos pra lá e pra cá, esfregando as mãos para dizer o quanto a grama estava linda branquinha. Só ele não está lá.
A praça já não está interditada e tudo segue normal. O maltrapilho continua a ser ninguém. Como não tivesse passado por ali.
Sei que o inverno vai passar e lá na frente vai voltar, mas há coisas que não voltam. Precisamos guardar.
Por isso passei a manhã a escrever estas linhas e buscar algum canto na memória que abrigue o homenzinho sem história. Aquele sorriso sincero que jamais pareceu se importar com os dentes que já não estavam mais ali.
Aquele que, agora sei, era o único riso dos meus dias.
por Rafael Antunes
Ilustração: Eti Pellizzari