
Uma vez ouvi falar que no Japão, quando alguém morre, a família não fica triste. Pelo contrário, fazem até festa para comemorar que a pessoa amada agora está em um lugar melhor. Para mim, esse é o maior exemplo de fé que se pode ter. Quando falei que vinha para o Brasil, minha família murchou. Me conhecendo, sabiam que não haveria forma de mudar a decisão. Estava sentenciada. Lhes restava a fé abraçada à banalidade da desgraça que envolvia o país.
Como muitos, desembarquei em uma região da nova vida onde o coração era grande e o bolso curto. Mas ao contrário do Haiti, o terremoto que atingiu o Acre foram os imigrantes. Fui um dos primeiros a chegar ao abrigo, e vi o desespero das centenas que vinham a cada dia, encontrando a desoladora sensação de chegar à casa de um parente distante sem avisar. Perdido, despreparado, desavisado, de pijama rasgado em uma terça-feira pela manhã. Esse era o nosso novo lar, que encolhia a cada novo vizinho de chão. Logo o galpão virou uma pequena favela, um organismo que ia ganhando vida enquanto arrancava a minha.
Quando já éramos mais de dois mil, em um espaço pensado para trezentos, o boato começou a correr: o governo tinha decretado estado de emergência. Estávamos amaldiçoados, fugindo de um desastre e trazendo a desgraça para os outros. O povo dizia que agora seríamos mandados embora para amaldiçoar outra nação, porque aqui já não éramos mais bem-vindos, e o que seria de nossas famílias que nem sabiam mais de nós? Tentei tranquilizar os que estavam mais próximos, mas deveria ter começado por mim. Comecei a tremer. Fui tomado por uma onda de calafrios que me paralisavam; a vida começou a rodar, e me vi novamente no terremoto. Meus filhos gritavam assustados, as casas vizinhas caiam, minha esposa com o bebê no colo gritando para fugirmos, e eu congelei. O mundo caía devagar. Minha última lembrança é de sua linda pele negra embaçada pelo pó que rompia por todos os lados. Uma zona de guerra da natureza contra si mesma. Vomitei. Eu só queria poder dar uma vida melhor pra minha família, porque o amor não vence a anemia sozinho.
Nos dias seguintes a sensação foi recorrente, e embora o clima daqui fosse quente e úmido, conheci o frio pela primeira vez. Acostumado ao verão da família, fui assaltado pelo inverno da saudade. Fiquei vários dias sem dormir ou comer, abraçado a mim mesmo em uma jornada infantil pela auto-redenção onde as consequências de minhas escolhas seriam tão boas quanto minhas intenções.
Em uma madrugada do quinto mês, acordei com o mundo mais barulhento que o normal. Três e vinte da manhã, e chegavam alguns caminhões, pessoas uniformizadas e logo descobri, humanizadas. Acordaram a todos, instalaram novos banheiros, e avisaram: começariam liberar os vistos humanitários para podermos trabalhar legalmente. Um a um, por ordem de chegada. Nossa dignidade estava prestes a ser assinada. Os empresários chegariam durante a tarde com algumas vagas, principalmente para o sul. Lá é frio, já avisaram. Não me importei, e juro que até comecei a sentir um calorzinho que não sentia desde a partida de Porto Príncipe. Talvez fosse o início da primavera.
Escrito por André Petrini
Ilustrado por Eti Pellizzari