Gengis Khan em Pequim 9 1798

O mercadinho era tradicional, perto da Linha Verde, instalado em um ponto alto a cinco quadras do shopping Cidade. O setor de hortifruti era nota 10. Padaria 9, açougue 8, preços em geral 7. Vinte funcionários, três caixas e três máquinas de cartão, ninguém desassistido.

Os bancos de praça da região eram ocupados nos dias de sol por mendigos tradicionais da vizinhança. Eles tomavam mais sol que o povo dos escritórios, e tinham marcas de expressão visíveis, bronzeadas, queimadas. Fechavam a testa para proteger os olhos, e sofriam ainda mais de outros processos embrutecedores. Dormiam tortos, à tarde, em público. Tomavam pouca água. Não cortavam os cabelos, comiam mal, tinham dentes sujos e saúde frágil. Suas roupas não lhes cabiam, porque não exigiam muito das doações que recebiam. Um sofria de problema de coração, outro de fígado, outro de varizes.

O final de semana havia corrido sem sobressaltos para André, que havia dedicado-se a lavar a própria moto e auxiliar a mulher, Janete, a limpar a casa. Ariou quatro panelas no começo da manhã de sábado enquanto esperava a água para café ferver, em fogo alto. Duas esponjas Bombril de marca genérica, mais barata. Lavou roupas: primeiro as claras, de molho desde a noite anterior, embebidas em alvejante e sabão em pó. Precisou esfregar meias e cuecas. Aos poucos trocou cada peça seca por alguma outra mais recentemente lavada, enquanto acompanhava o movimento do sol ao longo das horas. Também consertou o guarda-roupa do filho Danilo. Uma porta estava quebrada e a tábua de trás, a que segurava toda a estrutura, precisava e recebeu mais vinte pregos, para aguentar mais um semestre. No final do ano seu décimo-terceiro deveria permitir que trocasse alguns móveis. Massageou os pés da mulher depois do banho conjunto que tomaram no sábado à noite. Bebeu dez latas de cerveja entre as oito da noite de sexta e as onze da noite de domingo, mas não sentiu nenhum prazer especial em fazê-lo.

Já começou a segunda-feira querendo amassar a cara de Willy, colega de trabalho. Envelheceram mal e viam-se frequentemente juntos, embora nunca tenham sido amigos.

André filmou o cara roubando carga na sexta, com o celular, escondido. Conseguiu evidência que justificasse para os chefes sua posição de vantagem nessa batalha velada contra o outro, em uma operação serpenteante pelos corredores. Aproveitou a vantagem de observar de cima das grandes prateleiras de estoque, meio olhando para as caixas que tinha que olhar, meio flagrando o inimigo.

O método de Willy era trocar caixas de posição aos poucos, para deixá-las cada vez mais perto do grande portão duplo de ferro;  a saída. No fim do dia conseguiu retirar seis delas sem contratempos, e guardá-las discretamente numa Kombi escura que havia vindo buscá-lo ineditamente naquela oportunidade.

As pessoas inteligentes sabem de muita coisa, mas o mundo é dos espertos. Os primeiros costumam trabalhar para os outros, de tanto que entendem dos próprios interesses, e já que a introspecção não é bem aceita em ambientes agitados. Já os últimos costumeiramente não entendem nada sobre nada. Não precisam de grande intelecto para fazer mais, porque aplicam melhor suas forças limitadas. Fazem mais por si próprios ou, mais raro, pelos outros. Eles estão nos locais corretos enquanto dissimulam, convivem, antecipam, preveem e criam as horas certas para seus atos – o que é uma qualidade mágica. Como o exército mongol, que passou três anos cercando Pequim de cima de seus cavalinhos antes de invadir e dominar a cidade.

Tambores acelerados de guerra. Antes de ajudar a despedir Willy, André queria humilhá-lo. Achava que às vezes parecia bom fazer mal. Era por causa de pessoas daquele jeito que a equipe levava mijada atrás de mijada. Não queria defender a empresa, mas lutava pela própria dignidade. Pelo seu legado. Não gostava do jeito solar e histriônico do homem. Apesar dos anos de convivência, não haviam passado por episódios significativos ou edificantes juntos.

O dono do negócio chegou às 6h40 e começou a discursar para motivar a equipe, que o aguardava. Seu consumo de duas carteiras e meia de cigarros por dia tornava sua voz oscilante, áspera, suja. Limpava a garganta enquanto falava. Ninguém prestou atenção. Disse que o café da manhã estava especial. Tinha até pão de queijo e sonho. Ele sempre dizia que o café da manhã seria especial, mas os pássaros daquela gaiola dourada nunca entraram em comoção coletiva por causa desse discurso. O patrão falou de metas, das férias chegando para quatro funcionários, e perguntou se alguém tinha algum comentário para iniciar bem o novo período. Em geral era nessa hora que Maria, uma repositora evangélica, desejava boa semana a todos e ilustrava o comentário com passagens da Bíblia. Até o chefe, ateu, achava simpático. Dessa vez Maria não tinha nada para dizer. Willy pediu a palavra e engrenou duas piadas: uma de futebol e outra sobre acordar cedo. Ele parecia animado.

André sorriu para dentro e também levantou a mão direita, com os dedos bem espaçados, para energizar o braço inteiro. Sentiu força. A dor de pescoço com que estava sofrendo tinha ido embora. Esperou sua vez de falar com os olhos fechados e voltados para cima, em estado meditativo. Para ele não bastava matar os homens, estuprar as mulheres, roubar as aldeias e atear fogo aos povoados. Também era fundamental ver medo nos olhos do inimigo.

 

Marco Antonio Santos

 

A série continua com:

Pablo23h59Cidade do alémYorkshireBatata fritaJogos vorazes, Primavera

 

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Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Vida comum parte 1 0 5065

Vida comum parte 1

Véspera de feriado, antes da meia-noite e eu já com meia garrafa de conhaque na mente. Curtia me derreter no gole, de dose, de lata, de garrafa, de todo jeito. No feriado rolou um churrascão que nem lembro se comi, dropei umas caipiras antes de acender o fogo e fiquei mais preocupado com a temperatura das garrafas que da carne. Sábado a ressaca com a mão pesada, tava batendo forte, contra-ataquei com uns latão, encostado nos fundos do posto com a rapeize, só flagrando os doidinho tirando uns racha de Parati, Chevette e Gol Chaleira. Domingo rolou rave na região metropolitana, no meio do mato, não virava ir de bonde, botei uma gasolina na Bizz e meti o pé; duas carteiras de Minister depois já tinha descido whisky com energético, vodka com suco, vários ampola, um doce e umas água colorida que os parceiro botaram, sei lá qual fita, puta gosto de remédio. Bati a nave antes da hora, cheguei em Grayskull sem nem aproveitar a viagem, ensaiava falar e não saia voz, tava tenso, me mordendo, fiquei nervoso: deu bad. Tentei endireitar a caminhada tomando umas águas, mas não rolou, a conta não batia, os dentes rangendo, coração agitado querendo se mudar do peito. Precisava voltar pra minha goma, tomar um banho, talvez dois, sei lá, só precisava vazar, montei na moto e fui. Tava com dois IPVA atrasados, cabreiro de cair numa blitz, e se soprasse um bafômetro explodia a máquina – certeza. Queria chegar logo, entrei no modo Valentino Rossi e corri a milhão, como se fosse fuga. Foi aí que deu ruim no piloto automático, se pá que dormi em cima do jato, lembro só de uns clarão, uns flash. Vi o céu por baixo, deitado no asfalto, sei lá qual fita, tudo nublado, que dia bosta. Me liguei e já tava todo remendado no hospital, numa sala com umas vinte cabeça, todo mundo fudido, uns mais outros menos. Eu? Era cabeça de chave do grupo dos desgraçados: com a lata do frankstein, olho roxo, cara inchada, nariz quebrado, uns ponto na testa. Trinquei uma costela e quebrei outras duas, a clavícula rachou e a mão tava na carne viva. O médico foi desenrolando essa lista aí e eu aceitando na moral, os pensamentos embaçados, cheio de analgésico, todo bagunçado de dor. Aí teve uma mão que ele deu uma pausa, ficou mais bolado e mandou A real: disse que eu sofri um choque cabuloso no quadril, perdi mais de 80% do fígado, que num tinha como dizer o tamanho real do estrago, mais uma fita era certa, nunca mais ia poder beber, se tomar meia lata que seja, posso encomendar o caixão. Acordei umas três vezes crente que tava tendo um pesadelo, foquei umas horas que tava numa brisa errada de doce. Mas não. A vida é uma viagem desgraçada.