
Texto por Mateus Ribeirete,
Ilustração por Marceli Mengarda
(…) Pois é, a essa altura você certamente já percebeu o quão bonito eu sou. E ser bonito assim, claro, traz algumas generosidades. Como quando piso em qualquer loja de roupas e os vendedores dizem “Boa tarde, em que você pode me ajudar?” — o que, aliás, raramente é possível. Admito que tais generosidades me motivaram a manter alguns passatempos dos quais não necessariamente me orgulho.
Não queria tomar tanto o seu tempo, mas, já que você perguntou, me agrada cometer erros esquizofrênicos de português, ou anacronismos históricos ausentes de nexo, como “D. João VI nitidamente temia um ataque à Red Bull”, para notar contornos de dor na expressão daqueles que pouco a pouco transfiguram o prazer em corrigir os outros no questionamento do que é a verdade em si, dado que mentiras não poderiam ser compostas por um semblante tão celestial.
Também gosto de entrar no banco com uma katana nas costas para que o guarda encarregado da porta giratória passe pelo constrangimento de chamar minha atenção antes de fitar meu rosto. Quando seu olhar cruza com o meu, tamanho desconforto em disparar o alarme de metais o leva a ratificar “Desculpa, senhor, deve ter havido algum engano; prossiga”, ao que tão logo adentro o estabelecimento para sacar apenas uma cédula de vinte reais. Exponho minha katana durante todo o processo, apontando-a para cima. Na saída, proclamo que “Desculpa qualquer coisa, e boa semana”.
Já te contei da da vez em que encontrei Dorian Gray? Ao conhecê-lo, fiz o garoto se desinteressar pela pintura, pois se um quadro pôde sugar sua vida, tal arte jamais estaria apta a capturar a transcendência estética que meu rosto proporciona. Desiludido, ele hoje desenvolve aplicativos no Vale do Silício.
(…)
Mas devo confessar que ser belo assim carrega suas desvantagens. Às vezes, tento parecer estúpido e ninguém acredita, pois seria ilógico Deus gastar tanto tempo com a utopia geométrica da escultura física para nela depositar um cérebro limitado. Fora isso, não há desvantagens. Na verdade, valho-me de tanta beleza que, aos 32 anos, ninguém nunca reparou no fato de que sou analfabeto. Em meu ensino médio, passava os momentos de prova quieto, encarando meus professores com um sorriso sutil, boca fechada, a face levemente inclinada para baixo. Certa vez, um aluno chamado Diogo questionou a suposta injustiça de meu boletim sempre retornar irretocável. Em resposta, o colégio ameaçou expulsá-lo. “Está bem, eu o perdôo”, sussurrei por meio de minha boca delineada como uma igreja barroca, e prontamente havia, no pátio, dois murais com ilustrações de meu corpo — apenas uma delas liberada para visitação.
Quando se deparou com um Eu mais adulto, oito anos depois, Luca Marchetti, muralista responsável por ambos, cometeu suicídio, atordoado pela discrepância entre sua gravura e os traços inalcançáveis que a Natureza decidiu reservar a mim.
Oito anos também é o período utilizado por mim para fazer amor incessante com Juliana, esposa de Diogo. Sabendo desde sempre ser o pai biológico de seus três filhos, contei-lhe a informação em uma tarde ensolarada de domingo, após almoço em família. Sou tão belo que Diogo agradeceu aos prantos, num comboio emocional que o impulsiona semanalmente a entrar em contato para atribuir a mim a revitalização de seu casamento. Ainda transo com Juliana.
(…)
Na faculdade, firmei, com o reitor, um acordo que considerava minha presença como trabalho voluntário. Nessa época, passei a entrar em rodas de conversa formadas por desconhecidos dizendo simplesmente “Obrigado”. Ambicioso, migrei para a política, concorrendo ao próprio cargo de reitor no ano seguinte, com o lema “Olhe nos meus olhos e…”, assim mesmo, incompleto, tendo em vista que, após olhar em meus olhos, poucos foram os seres humanos capazes de manter qualquer capacidade de discernimento, e o eventual uso de papel para finalizar meu lema seria nada mais que redundante.
Ninguém concorreu contra mim e, da mesma forma, ninguém questionou a lei que não permite candidatura de um estudante de graduação ao cargo de reitor. Dois profissionais foram presos por conta disso. Desisti do posto após três semanas, alegando diferenças criativas. O descabimento de minha justificativa não foi questionado — pelo contrário, sou tão criminalmente bonito que um busto de bronze se ergueu em minha homenagem. Ofereci-me à ciência, que constatou como minhas lágrimas curam a acne, e meus cabelos, a calvície.
Meu cabelo, por sinal, é tão assustadoramente belo que, quando pedi para que o raspassem, Luan, meu cabeleireiro e instrutor de Krav Magá, exigia ordem de polícia. Quando pedi para o guarda me concedê-la, esse conclamou, com os olhos marejados, “Seu sorriso é tão belo que me ensinou o nome de todos os dentes da arcada dentária sem você dizer uma palavra”. Meu cabelo é tão assustadoramente belo que, ao invés de ser afetado por shampoo, o mero contato de minha franja com sabão transforma a espuma natimorta em 500 ml de condicionador La Roche-Posay. Por sua vez, essa franja é tão augusta que decide, mês a mês, por conta própria, qual a grafia mais adequada entre ‘xampu’ e ‘shampoo’. Minha barba foi adaptada para três espetáculos de patinação artística só no Ocidente, enquanto chineses construíram uma cidade subterrânea para um monumento de quarenta metros de largura que reproduz, em escala impecável, minhas sobrancelhas. Minha pele traduz a textura de uma nuvem.
(…)
Desculpe por te alugar tanto. A resposta curta para sua pergunta, se me permite a redução, é π. Entrei pi vezes na fila para ser bonito. E você?