
Esses dias a Tânia disse que se não acho meus vizinhos chatos, o vizinho chato sou eu.
Devia ser sacanagem dela, porque a gente estava brigando, mas guardei a bronca. Taninha acha que entro demais na bobajada do meu prédio. Mas não tem escapatória: sou conselheiro do Rubinho, nosso síndico.
Além disso, aguardo paciente pelo dia de nascimento de alguém que me curve ou altere a vontade. Peito aberto, braços para trás das costas. Inspiro ; exalo.
Sou candidato à próxima gestão. A eleição é daqui duas semanas, só concorro contra uma pessoa e minha campanha é melhor.
Eu versus Simone. Quem diria?
Ela é mulher do meu amigo Nelson, parceiro de truco, de bebedeira e de torcida pelo Paraná Clube.
Ele é um anjo. Sou dos que fala ao motorista somente o indispensável, então não vou me estender nessa seara. Ela, porém, e também para resumir, é uma idiota – para minha vantagem.
Pode até ser bobagem, mas acho mesmo que tudo está conectado de formas misteriosas. Tudo, de bom e de ruim. É estranho admitir, já que tenho preguiça de explicar as coisas direito. E tenho mais o que fazer que gastar tempo com crendices e com gente burra. Até capto bem os sinais do universo, apesar dos ruídos. Ninguém se interessa de verdade pelos problemas dos outros, mas ainda assim vou contar duas coisinhas ou três, sobretudo para aliviar a cabeça.
O primeiro caso é que meu sobrinho veio em casa encher minha paciência esses dias. Normal. Acontece três vezes por semana, quando minha irmã vai malhar e deixa o menino aqui. Semana passada ele trouxe lição de artes para fazer. Era colar recortes de revista e colorir um papel azul, grosso tipo cartolina. Ele sujou tudo, claro, porque é um moleque sem vergonha, não só quando vem.
Minha mesa virou uma zona tão grande que me fez ter saudade das festas de firma, lá atrás, quando eu trabalhava fora. Era sempre um povinho maluco, mas pelo menos depois sempre vinha alguém limpar as coisas por nós na conta da firma. Aí é fácil. Homens e mulheres aptos, todos com preguiça de resolver a própria sujeira. Na minha época de exército não era assim. Ainda bem que me aposentei e estou tranquilo, com tempo para pensar.
O segundo caso aconteceu com minha rival Simone. Ela pediu a palavra na reunião de condôminos da semana passada e começou a se queimar sozinha. Falou uma bobajada sem tamanho, desesperada por alguns votos. Gritou, se exaltou e sem querer me ajudou, porque aí nem preciso falar para o pessoal que ela é maluca e possivelmente perigosa. Eu fico na minha. São eles que me procuram para comentar o tema receosos, de forma que agora sinto que ganharei com vantagem maior que a que tinha previsto antes.
O mais difícil é saber o que a gente quer. Quando sabe, é bom aprimorar o que sabe fazer e aproveitar as potencialidades dos que nos cercam. Meu sobrinho e Simone me deram uma nova arma. Se ela já gritou em público sem nenhuma pauta urgente em voga, imagino o que ela fará quando tiver motivo de verdade para ficar nervosa.
Eu já disse que tudo está ligado, e digo agora que quem presta atenção nisso está sempre em vantagem. Há de ser pelas leis secretas que determinam o funcionamento de tudo, mas o fato é que situações desagradáveis podem sim gerar outras positivas. Por exemplo, imagine os carros-bomba que os cartéis de droga mandavam explodir nos anos 80 e 90. Acho que explodiram uns 70, somente em 1991, e somente em Medellín. Mortos para um lado, feridos para o outro. Mas este pesadelo acabou. Hoje em dia eles até se dispõem a organizar uma maratona internacional de rua na mesma cidade. É um grande evento, com gente do mundo todo. A violência do passado deve ter alimentado essa mentalidade menos beligerante. Os vendedores de droga de lá tomaram para si métodos menos brutais, para evitar publicidade negativa. E aí dá até para gastar tempo e orçamento com corridas de rua, já que o SUS deles está menos sobrecarregado com as consequências do terrorismo e da guerrilha urbana com a qual sofriam. Os carros-bomba irritaram muita gente, então o pessoal se mobilizou para limpar o espaço e sua imagem. Há disciplinas que explicam como estão tirando o Departamento de Antioquia dessa situação, como a economia e a história, mas não consigo entendê-las direito. Vai ficar para a próxima vida. Talvez nem para a próxima, porque a realidade costuma ser mais intrincada do que aparenta. Pelo menos foi isso que apreendi de um livro que terminei de ler sobre a Colômbia do século XIX.
Sabe aqueles filmes em que os sequestradores mandam cartas anônimas para a família da vítima? Aquelas cartas com letras recortadas de vários tipos de revista, formando mensagens ameaçadoras? Então. Juntei a bagunça do meu sobrinho com o desequilíbrio da minha adversária e estou concluindo uma mensagem meio brava, meio engraçada para ela. Só tem letras recortadas da Caras e de uma revista de design que vi na banca. Tipografia é mesmo algo fascinante. Vou concluir o trabalho e entregar na surdina debaixo da porta dela, e já estou me divertindo antecipadamente com a próxima reunião de condomínio, amanhã à noite.
Em completa paz, vamos à disputa. Que a vitória seja limpa e justa.
Ilustração: Carol Rehbein
Texto: Marco Antonio Santos
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