
Às 4h30 da manhã começa a movimentação na rua. Tem gente que detesta, reclama do barulho dos feirantes. Eu não ligo, aprendi a gostar. Significa que vou poder começar a sexta-feira com um belo pastel de queijo e choco-milk. E ainda garantir frutas, verduras e legumes frescos a um preço justo. Com o valor absurdo que esses supermercados cobram, parece sempre um bom esquema.
A ordem das barracas é sempre a mesma e, aos poucos, a gente vai criando relações com alguns feirantes, até elege os preferidos. O critério, no meu caso, é a habilidade deles em manter um bom papo entre o momento que estou escolhendo o que levar e a devolução do troco. É uma arte.
E o Seu Antônio é um dos melhores nesse quesito. Sem nunca ter passado pela tortura de ter que ler aqueles manuais enfadonhos do Philip Kotler, o homem é um especialista em marketing.
“Bom dia, amigo!”. “Olha a alface fresquinha, vizinha!”. “O neto tá melhor, Dna. Cecília?”. Até usar a voz de um jeito certo ele aprendeu. Pensa que é fácil disputar e se fazer ouvir com o sertanejo universitário da barraca de bugigangas chinesas logo ali ao lado? São anos de treino.
Mas, semana passada, achei o Seu Antônio meio desanimado. “As vendas não vão bem?”, perguntei. “Que nada, comida você sabe, nunca ninguém deixa de comprar. Uns dias vende menos, mas compensa em outros”.
Então algum problema na família, talvez? “Nem fala uma coisa dessas, minha filha. Lá em casa, graças ao meu bom Deus, tá todo mundo muito bem”. Falei “amém” meio que forjando uma fé. “São essas malditas maçãs”, ele revelou um tanto quanto rancoroso. Parei para reparar. Umas totalmente opacas, outras manchadas ou machucadas. A maioria, podre. Nem pareciam dignas daquela barraca com produtos sempre tão bem selecionados.
“O que houve, Seu Antônio? O povo desistiu de comprar maçã?”, tentei descontrair. E aí o homem desandou a falar. “Antes fosse, minha filha. A qualidade já não andava muito boa. Com essa moda de transgênicos, tão produzindo umas frutas esfarelentas, sem suco. No meu tempo, a gente mordia e chegava a escorrer pelo queixo. Mas com isso as pessoas se acostumam. O gosto da gente vai se adaptando, né?”. Isso é, Seu Antônio! Só espero não morrer por conta desses venenos, pensei. “O problema mesmo, minha filha, é essa crise da educação”. Não entendi. Fiz cara de quem estava muito interessada em uma explicação. E ele continuou. “Começa de cima, minha filha. Esses políticos que não valorizam os professores e tão pouco se lixando pra educação das crianças. Aí os professores desanimam com tanto descaso. Sobra pra quem? Pros alunos. Hoje eles acham desperdício ir pra aula. E sobra pros pais também, que não dão conta de convencer essa molecada da importância da escola”.
Ok, Seu Antônio, mas e as maçãs? “Ué, minha filha, se não tem educação, não tem conhecimento. Apodrecem as maçãs esperando quem as comam ou quem as deem como presente. Deixaram de ser dádiva pra virar lixo. Entende, minha filha? Apodrece tudo mesmo”. Jamais pensaria por esse lado, Seu Antônio. Mas sim, a crise das maçãs nunca foi tão evidente.
Texto: Priscilla Scurupa
Ilustração: Caroline Rehbein