Muß Es Sein 0 1269

A sensação de quebrar uma vidraça é inesquecível. Num segundo uma pedra pontuda está em sua mão, no outro, misturada aos cacos e ao caos. Assistir a uma parede de vidro despedaçar nos faz lembrar de como somos frágeis. Se nossa segurança é feita por pedaços de cimento e vidro, não estamos seguros.

 

Entre um vão e outro do calçamento, procura por uma pedra pequena. Uma bem menor do que aquela que há 20 anos quebrou a janela da dona Cida. Hoje não quer quebrar nenhuma janela, só quer improvisar uma campainha. Tem vindo aqui todas as quartas-feiras das últimas seis semanas, desde que seu horário na corporação mudou, mesmo assim, ainda não decorou o número do apartamento, só a posição da janela. Depois que a terceira pedrinha estalou no vidro, se sentiu um idiota por esquecer o celular no armário. Estava abaixado, coletando mais pedras, quando ouviu a pesada janela se abrir. “Interfona no 106”. Respondeu apenas com um sorriso e repetiu o ato quando a voz pelo interfone questionou, “Abriu?”. Subiu as escadas pulando degraus. A porta já estava aberta, os lábios ignoraram as formalidades e foram logo de encontro.

 

Desprovidos de roupas e preocupações, deitados um sobre o outro e respirando no mesmo compasso, parecem uma coisa só. Pouco antes, no sexo, realizaram movimentos tão sincronizados que pareciam ser frutos de anos de ensaio. Apesar de parecer que o tempo tinha parado para os assistir, o relógio ao lado da cabeceira confidencia que é hora de partir. Veste as roupas lentamente enquanto as mãos dela o envolvem em um abraço que pede pra ele não ir embora, nunca mais. Em frente à porta, um último beijo, com mais carinho que desejo. Os olhos dizem o que as bocas não têm coragem. E assim, ele vai, descendo um a um os poucos degraus.

 

No caminho pra casa fica o centro da cidade, sempre cheio, sempre com pressa. Colocou ordem no caos e calou todas as buzinas com a paz que emanava. O fim da tarde ameniza a força do sol. Caminhar na rua se torna agradável, morar nela continua não sendo e, provavelmente, nunca vai ser. Entrou na padaria e comprou tudo o que dava com vinte reais: pão de queijo, empadão, bolo e café. Sentou no chão, embaixo da marquise e ao lado do Seu Evair. Demorou dez minutos pra beber seu café, enquanto seu amigo apreciava o banquete inesperado. Se despediu com um abraço, que na vida de Seu Evair tem sido mais raro que café quente. Levitou nas quadras seguintes, até a porta do prédio.

 

Em casa foi recepcionado pelo seu gato, Doutor Almofada. Que miou, ronronou, exigiu carinho e fez de tudo para atrasar o banho de seu dono. Mas nada que tenha gerado algum desafeto de ambos os lados, em menos de meia hora já cochilavam juntos no sofá, numa sintonia distinta da tevê ligada. A porta da sala se abre com vigor suficiente para fazer o Doutor Almofada levantar voo. Antes de conseguir esboçar uma reação, é atacado pelo Pedro e pela Ana Júlia, seus anjinhos de nove e seis anos. “Chuva de cócegas” é o grito que faz as crianças correrem rindo pela casa, dando tempo e espaço suficiente para a consciência retomar o controle. Beija sua esposa enquanto pega as sacolas de compras de suas mãos. Estavam pesadas, não sabia que faltava tanta coisa em casa. A noite segue como de costume, coloca as crianças para dormir às nove e se deita às dez. Repousa a cabeça no travesseiro enquanto acomoda a cabeça de sua mulher em seu ombro. Espera pelo sol e por tudo o que vem pela frente.
Um quarto frio com vinte camas velhas e colchões duros. As melhores e piores noites de sono são lá. Todo bombeiro é treinado para deitar e dormir, é necessário estar descansado em qualquer situação. Sonhava com leões numa praia quando a sirene exigiu que toda a corporação corresse para os caminhões. Era um incêndio, era mais um dia comum pra qualquer homem naquele caminhão. Passaram em frente à marquise do Seu Evair, que dormia tranquilamente, mesmo com todo o barulho que o caminhão fazia. Talvez ainda estivesse tomado pelo torpor e não notou a estranha familiaridade do percurso que o caminhão fazia. Talvez não quisesse notar. Mas em algum momento notou. Não teve tempo de pensar em nada, só de correr. Foi em direção ao fogo, ignorando todas as recomendações, todos os gritos de alerta. O fogo fez tudo arder e no caminho até o quarto das crianças, o chão cedeu.

 

Escrito pelo Gabriel Protski

Ilustrado pela Eti Pellizzari

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Escala de Baumé 0 4880

Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Chegada 0 6417

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, prepare a casa
e meu coração pulou afora
bateu amor por toda a cidade

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Ela está vindo!

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, mas levo ainda um pouquinho
e antes de te ter em meus braços
já tenho em todos os sonhos do mundo

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Minha menina vai chegar!

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, já não falta mais tanto
e prevendo as noites com você,
me vejo em claro sonhando

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Vou ser pai