
A sensação de quebrar uma vidraça é inesquecível. Num segundo uma pedra pontuda está em sua mão, no outro, misturada aos cacos e ao caos. Assistir a uma parede de vidro despedaçar nos faz lembrar de como somos frágeis. Se nossa segurança é feita por pedaços de cimento e vidro, não estamos seguros.
Entre um vão e outro do calçamento, procura por uma pedra pequena. Uma bem menor do que aquela que há 20 anos quebrou a janela da dona Cida. Hoje não quer quebrar nenhuma janela, só quer improvisar uma campainha. Tem vindo aqui todas as quartas-feiras das últimas seis semanas, desde que seu horário na corporação mudou, mesmo assim, ainda não decorou o número do apartamento, só a posição da janela. Depois que a terceira pedrinha estalou no vidro, se sentiu um idiota por esquecer o celular no armário. Estava abaixado, coletando mais pedras, quando ouviu a pesada janela se abrir. “Interfona no 106”. Respondeu apenas com um sorriso e repetiu o ato quando a voz pelo interfone questionou, “Abriu?”. Subiu as escadas pulando degraus. A porta já estava aberta, os lábios ignoraram as formalidades e foram logo de encontro.
Desprovidos de roupas e preocupações, deitados um sobre o outro e respirando no mesmo compasso, parecem uma coisa só. Pouco antes, no sexo, realizaram movimentos tão sincronizados que pareciam ser frutos de anos de ensaio. Apesar de parecer que o tempo tinha parado para os assistir, o relógio ao lado da cabeceira confidencia que é hora de partir. Veste as roupas lentamente enquanto as mãos dela o envolvem em um abraço que pede pra ele não ir embora, nunca mais. Em frente à porta, um último beijo, com mais carinho que desejo. Os olhos dizem o que as bocas não têm coragem. E assim, ele vai, descendo um a um os poucos degraus.
No caminho pra casa fica o centro da cidade, sempre cheio, sempre com pressa. Colocou ordem no caos e calou todas as buzinas com a paz que emanava. O fim da tarde ameniza a força do sol. Caminhar na rua se torna agradável, morar nela continua não sendo e, provavelmente, nunca vai ser. Entrou na padaria e comprou tudo o que dava com vinte reais: pão de queijo, empadão, bolo e café. Sentou no chão, embaixo da marquise e ao lado do Seu Evair. Demorou dez minutos pra beber seu café, enquanto seu amigo apreciava o banquete inesperado. Se despediu com um abraço, que na vida de Seu Evair tem sido mais raro que café quente. Levitou nas quadras seguintes, até a porta do prédio.
Em casa foi recepcionado pelo seu gato, Doutor Almofada. Que miou, ronronou, exigiu carinho e fez de tudo para atrasar o banho de seu dono. Mas nada que tenha gerado algum desafeto de ambos os lados, em menos de meia hora já cochilavam juntos no sofá, numa sintonia distinta da tevê ligada. A porta da sala se abre com vigor suficiente para fazer o Doutor Almofada levantar voo. Antes de conseguir esboçar uma reação, é atacado pelo Pedro e pela Ana Júlia, seus anjinhos de nove e seis anos. “Chuva de cócegas” é o grito que faz as crianças correrem rindo pela casa, dando tempo e espaço suficiente para a consciência retomar o controle. Beija sua esposa enquanto pega as sacolas de compras de suas mãos. Estavam pesadas, não sabia que faltava tanta coisa em casa. A noite segue como de costume, coloca as crianças para dormir às nove e se deita às dez. Repousa a cabeça no travesseiro enquanto acomoda a cabeça de sua mulher em seu ombro. Espera pelo sol e por tudo o que vem pela frente.
Um quarto frio com vinte camas velhas e colchões duros. As melhores e piores noites de sono são lá. Todo bombeiro é treinado para deitar e dormir, é necessário estar descansado em qualquer situação. Sonhava com leões numa praia quando a sirene exigiu que toda a corporação corresse para os caminhões. Era um incêndio, era mais um dia comum pra qualquer homem naquele caminhão. Passaram em frente à marquise do Seu Evair, que dormia tranquilamente, mesmo com todo o barulho que o caminhão fazia. Talvez ainda estivesse tomado pelo torpor e não notou a estranha familiaridade do percurso que o caminhão fazia. Talvez não quisesse notar. Mas em algum momento notou. Não teve tempo de pensar em nada, só de correr. Foi em direção ao fogo, ignorando todas as recomendações, todos os gritos de alerta. O fogo fez tudo arder e no caminho até o quarto das crianças, o chão cedeu.
Escrito pelo Gabriel Protski
Ilustrado pela Eti Pellizzari