
Depois de uma hora ao telefone falando com Quentin, em Saint-Denis, me lembrei de Lisa e mandei uma mensagem de texto:
– Oi Lisa, como estão as coisas ai na Bélgica? Estava vendo as notícias sobre esses caras em Bruxelas. Você e Jansen estão bem?
Após dois minutos, às 7h47, Lisa responde:
– Jansen está na Tanzânia, só volta em oito de janeiro. Eu estou em Gante. A atmosfera aqui está realmente estranha, em todo lugar. Em Bruxelas, tudo está fechado e vai ficar assim até terem certeza de que não existe perigo.
– Pois é, eu vi na internet.
– Sabe, eu acho isso impossível. Aqui em Gante tem polícia em toda parte, mas pelo menos os lugares continuam abrindo, as coisas ainda estão funcionando.
– Pelo menos. É muito longe de Bruxelas? Tipo, quantos quilômetros?
– Dá uns 50 minutos de carro. Acho que uns 50 quilômetros. É perto.
– Aham, acabei de ver aqui no mapa.
– Aqui tudo é meio perto. As pessoas estão com medo de que aconteça um novo ataque em outra grande cidade. Mas o governo diz que o perigo está em Bruxelas e talvez um pouco em Antuérpia. A Bélgica é muito pequena. De Gante até Paris são apenas três horas de carro.
– Aham.
– Mas, mesmo assim, todo mundo mantém suas vidas porque ficar com medo não ajuda.
– Claro.
– É estupidez e só faz as coisas ficarem piores.
– Esses caras são uns covardes, atirando e explodindo pessoas desarmadas. Mesmo assim, não acho que eles vão atacar na Bélgica. Não por enquanto.
– Eu não sei se eles vão, mas sei que eles querem que a gente pense que vão. Além disso, nós estamos explodindo pessoas na Síria por um ano e meio já, isso nunca vai ter fim.
– Faz sentido. Eu não consigo imaginar como deve estar sendo pra vocês.
– Você não tem noção como é viver com alarmes falsos. Agora parou um pouco. É assustador. A atmosfera é mais ou menos assim: todo mundo sabe, mas tenta viver como antes, como se nada estivesse acontecendo. Você olha pra rua e vê policiais mascarados, andando com armas muito grandes e toda hora que se vê uma viatura passando ou se ouve um barulho, as pessoas começam olhar em volta, com cara de medo.
– Creepy!
– Então, pra você ver. Não tô dizendo? Ninguém mudou a vida, mas ao mesmo tempo, tudo mudou.
– Claro, entendo.
– O mais idiota disso tudo é que o país está afundando, a economia indo pro buraco, as atividades culturais estão cada vez menos criativas, a felicidade está em baixa, a confiança mútua também… não sei, estou curiosa pra saber o que ainda vem por aí.
– A gente deveria era se mudar pro Havaí. A terra prometida. Não, brincadeira. Eu não sei. Te dizer que aqui no Brasil as coisas não estão lá muito bem. A gente não tem terrorista do jihad, mas estamos destruindo muitas coisas boas.
– A Europa é que está afundando, mesmo assim, você continua bem-vindo aqui em casa. Eu fiquei sabendo do que houve por aí, aquela lama toda. Mas o Brasil não continua tentando ir pra frente?
– Faz tempo que ele está tentando. Por enquanto, o que vai pra frente é só a lama. Viu as fotos do mar? Terrível, vamos comer peixe mutante daqui uns dias. Moqueca ferrosa.
– Eu li no jornal que foi quase como um acidente de usina nuclear. Terrível! Mas eu imaginava que o Brasil ia melhorar. Não está funcionando?
– Não sei se é suficiente. Algumas pessoas estão melhorando. Outras continuam não aprendendo.
– É assim mesmo, leva tempo até que grandes mudanças sejam feitas. Provavelmente isso não vai acontecer enquanto você estiver vivo porque os passos são pequenos.
– Eu sei, mas as pessoas estão ficando violentas Lisa. Algumas estão pedindo que os militares voltem a ditar as regras. Galera jovem pedindo esse tipo de coisa.
– OOOOHHHH, isso não é nada bom! Na França existem quinze mil garotões prontos pra entrar pras forças armadas. Todos com pensamentos fascistas. O tempo de glamour da Europa já passou, os países estão em decadência. O que pode vir na sequência?
– Não sei, o quadro está muito indefinido. Talvez em dez anos eu possa fazer melhores previsões.
– Dez anos? Não sei não. A Espanha, Portugal e Grécia estão realmente na merda e os problemas com a Rússia, agora a Síria. Têm os refugiados também. Eles trazem muitas perguntas que não sabemos responder. Existem países construindo muros nas fronteiras. Isso é muito exagero.
– São consequências dos conflitos. As pessoas precisam repudiar a cultura da guerra.
– Sim! Bélgica, França, Estados Unidos, Rússia, todos estão fazendo os movimentos errados. Eu até entendo que eles estão apreensivos, mas o medo é o pior conselheiro.
– Concordo.
– Estão matando pessoas esperando que isso vá salvar pessoas. Não tem cara de solução.
– Minha opinião é a mesma.
– Acabar com esse ou aquele grupo terrorista não vai adiantar porque existem esses “lobos solitários” espalhados no mundo todo. Esse é o grande problema aqui na Bélgica agora.
– Hahahaha, estão falando justamente desses “lobos solitários” na televisão. Agora mesmo. É um repórter brasileiro falando de Nova York.
– Sério?! Que coincidência!
– Falando nisso, já ouviu falar sobre os mortos na Nigéria. Grupo Boko Haram? Sabe alguma coisa deles? Já mataram mais de dezessete mil pessoas.
– Quando?
– De 2011 até agora. E ainda estão com aquelas 200 garotas sequestradas.
– Pois é, tá vendo, só se fala na Síria agora. A gente até perde o foco. Dezessete mil pessoas, sério mesmo? Meu Deus!
– Eles forçaram mais de dois milhões de pessoas abandonarem suas casas. Esses refugiados estão espalhados pela África agora.
– E ninguém está tentando parar esses caras. (Estou envergonhada de não saber nada sobre isso).
– Lisa, você lembra daquele protesto global na internet exigindo: devolvam nossas meninas? Isso foi no ano passado, ou em 2013 talvez.
– Sim, eu lembro.
– Boko Haram sequestrou duzentas e cinquenta meninas de uma escola. Cinquenta delas conseguiram escapar. As outras continuam lá, escravas.
– Que terror, meu Deus. Isso me lembra o livro que estou lendo sobre os meninos soldados no Congo. Eles também são sequestrados muito cedo. Passam por lavagem cerebral.
– Mas é isso que os jihadistas fazem hoje, os nazistas fizeram há pouco tempo.
– A história não para de se repetir. Vai ser assim sempre eu suponho.
– Qual é o nome do livro?
– Traduzindo ficaria algo como “Quando os Elefantes Lutam”. É belga, não sei se já tem versão em inglês, muito menos em português. Acontece no Congo, meu país tem uma longa história por lá.
– É, eu sei. Eu li aquele livro “O Coração das Trevas”, do Joseph Conrad, que é sobre os belgas no Congo também. O livro inspirou o Coppola pra filmar “Apocalypse Now”.
– Sério?! Não sabia. Bom esse livro?
– É muito bom, eu gostei.
– Acho que eu deveria ler esse também. Eim, preciso ir. Tenho um almoço marcado com alguns amigos.
– Claro, vai lá!
– A gente se fala!
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Texto: Jadson André
Imagem: Alex Rande