
As manifestações mais frequentes são parecidas com as de outras doenças mais vulgares, como a gripe e a dengue. Começa com a febre, a dor de cabeça, dor no corpo – especialmente nas batatas-da-perna. Podem também ocorrer vômitos, diarreia e tosse. Nas formas mais graves, a pessoa pode ficar com a pele e os olhos amarelos, o que é tecnicamente chamado de icterícia, e há a necessidade de cuidados especiais como internamento hospitalar. O enfermo pode apresentar também hemorragias, meningite, insuficiência renal, hepática e respiratória. O último e infalível sintoma é a vontade de morrer.
Muitos têm essa vontade atendida. Quarenta porcento, apontam estudos. Jorge, tendo negada essa última aspiração, foi amaldiçoado com uma sobrevida indesejada e sofrida. Seus rins nunca mais foram os mesmos – a fadiga o consome, ele toma um sem número de vitaminas, sente frio até nos climas mais agradáveis e seu hálito de amônia afasta qualquer possível desavisada que se pretenda sua companheira. Logo ele, homem de muitos amores, agora repele pessoas como fossem ímãs de pólos iguais.
Contraiu a leptospirose de um jeito inusitado, mesmo seguindo o conselho “evite entrar em contato com água de enchente” que as redes de televisão veiculam todo ano na época de chuvas. Jorge voltava bêbado de uma festa e caiu de bicicleta num esgoto a céu aberto. Em esgotos moram ratos, ratos mijam, em mijo de rato vive a leptospira, e pronto, pegou. Como achou ser uma gripe, encheu a cara de chá de limão com mel antes de ir a um médico, o que comprometeu sua recuperação. Foi por uma margem de um ou dois dias de atraso no diagnóstico que o funcionamento dos rins foi prejudicado, então no começo ele fazia questão de divulgar a todos que, em caso de sintomas de gripe que viessem acompanhados de fortes dores nas panturrilhas, procurassem um médico. Mas só no começo, porque depois até isso perdeu o sentido na vida de Jorge. A indiferença dele para com o próximo tomou conta.
De uns anos pra cá, passou a se dedicar mais às artes. Por sorte, vem de uma família rica, o que lhe garante uma existência independente de um trabalho formal que lhe tome pelo menos seis horas do dia. Pinta, compõe canções e escreve poesias, mas poesias meio ruins. Jorge desenvolve conceitos interessantes, mas tem sérias dificuldades em traduzi-los em palavras. Dia desses, chegou à conclusão de que o amor é como uma doença psicossomática, pois é algo que não existe em lugar algum que não nas cabeças das pessoas. O poema ficou assim:
Que será de mim
sempre sozin
sem amor, enfim.
Se bem que o amor,
é fogo que arde,
é fogo que arte,
mas nem existe de fato.
É psicossomático,
como vivêssemos no ático
de uma única razão.
Ruim, muito ruim. Dois amigos mais chegados pensaram em alertar Jorge para o fato de que a sonoridade da palavra “psicossomático” talvez não fosse lá muito adequada em termos poéticos. Mas desistiram, que Jorge já andava deprê demais por aqueles dias, e preferiram massagear o ego do colega. É um pouco triste um escritor desprovido de qualidade textual, mas são esses os dias em que vivemos, não é mesmo? Cada um de nós traz em si um pouco de todas as coisas e um muito de quase nada, nesses tempos de internet e conhecimento on-demand. Mas, voltando – os amigos desistiram de criticar, até porque ele é muito interessante em outras áreas das artes, especialmente nas artes plásticas. Sua obra-prima, “Dois Pianos Queimam Ao Som De Um Terceiro Piano”, uma perturbadora tela em tinta óleo, de 1,5m x 2m, está sendo negociada para uma exposição na Europa. A família torce, na esperança de que isso traga algum alento àquela pobre alma, enquanto Jorge dá a mínima. No fundo, o maior e único plano dele para o futuro é a morte.
Mas o fator mais significativo que se alterou na vida pós-leptospirose de Jorge foi o teor onírico de seu sono. Constantemente o rapaz é visitado por sonhos horríveis, uns delírios surrealistas que já passaram por incestos, chuvas de sangue, ratos gigantes que mijavam nele enquanto gargalhavam, e até dois pianos que queimavam enquanto um outro piano tocava. Esse é o único “sintoma” de que Jorge aprendeu a gostar. Algumas pessoas preferem esquecer pesadelos, mas ele não. Dos pesadelos ele acorda agradecido, por ter fugido da inquietação e do desespero que causam, e principalmente por levarem alguma emoção a uma vida já tão desnecessária. Os sonhos bons, entretanto, estes servem apenas para iludir. Os sonhos tecnicamente agradáveis, aqueles em que Jorge voa, em que joga bola, ou aqueles em que transa e acorda saciado, quando se vão, jogam Jorge de volta à vida de esgoto em que ele vive. Os sonhos bons não têm dó daqueles que sofrem acordados.
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por Rômulo Candal
fotografia de Racheal Watson
publicado originalmente no Jornal RelevO
Rominho, orgulho do padrinho, muito 10.
A nossa experiência de vida é tão insubstancial quanto o tecido do sonho durante a noite ensina Buda. Medite!