O mundo é um grande útero 0 1630

Fui me encontrar com a garota que estava fazendo um curta sobre bebês saindo da vagina. O curta ia se chamar A origem do mundo, por causa do quadro do Courbet. Uma buceta peluda aberta direto na cara do observador, apreciador, público, crítico; uma buceta replicada de modo obssessivo até que Zuckerberg impedisse e bloqueasse os usuários. Mas ainda não havia por ali Zuckerberg nem a sua máquina alucinante replicadora de imagens.

Cheguei umas cinco da tarde no bar; abria cedo, para os que gostavam de beber desde cedo. Era um bar ruim excelente. Com quatro mesas de sinuca, um balcão enorme, e mesinhas de metro quadrado espalhadas no espaço, separadas somente por uns pilotis que impediam a visão entre algumas mesas. Na fila do banheiro todo mundo acabava se encontrando. Mas ainda era cedo.

O casal dono bar parecia não ter dormido bem. Ela andava feito um zumbi entre as mesas, executando ações programadas. Servir as bebidas e os aperitivos e esvaziar os cinzeiros cheios, garantindo que a conversa continuasse fluindo. Enquanto o velho ficava atrás do caixa com meio farol de olhos abertos, ouvindo parcamente os pedidos de passar a régua ou pegar mais bebida e fichas de sinuca e anotava tudo com aquela letra de quem já havia trabalhado em escritório de contabilidade.

Talvez os dois tenham ido longe na noite anterior; estavam com uma ressaca que ia se curando à medida que a noite avançava. Aquele tipo de temperamento dos legítimos notívagos que ganham energia com o crescer das sombras e vão ficando mais acesos, mais divertidos e abertos à comunicação – com ou sem cigarro. Eles tinham uma boa conexão e realizaram o sonho de abrir um bar legal que fizesse a diferença. E fizeram isso por um ideal e não com o objetivo de lucrar, como era o caso dos novos bares que, por mais que simulassem uma atmosfera retrô e despojada, tinham por trás um grande projeto de fazer dinheiro servindo bebidas caras e explorando os melhores dj´s e dispondo todo o tipo de interação psicotrópica ao alcance dos frequentadores; embora os donos estivessem sempre sóbrios e atentos a qualquer um que excedesse no modo de se comportar adequadamente dentro de um “estabelecimento comercial”. Aquele não. Aquele era realmente um ótimo bar ruim. Cobrava-se um preço justo pela bebida e a música que tocava era de primeira, um repertório de quem tinha consumido o melhor da maestria musical dos anos 70 e se arrastasse para a legião dos músicos que aprenderam bem a lição com os mestres. Uma única tevê centralizada entre a parede de bebidas deixava rolar Lou Reed, Nick Cave, Joan Baez, Pixies e afins por todo o ambiente. E tinha sempre o garoto negro que aparecia por lá, com uma mochila da nike; uns gestos cuidadosos e fala em meio tom. Quando ele chegava no bar, ia fazendo um rodízio de mesa em mesa distribuindo suas benesses a quem tivesse interesse. O cúmulo da vida do bar foi quando se soube que o garoto tinha levado um tiro fatal da polícia. Todo mundo que andava por ali sentiu um pouco de medo ao saber do ocorrido.

Quando a menina chegou passamos a falar sobre o curta. Ela queria fazer uma montagem de vídeos que ia colecionando: a ultrassonografia do bebê que sua mãe estava esperando, aquele bebê mal definido boiando num mar de pixel. Alguma coisa do espaço sideral. O portal-útero para outras galáxias. Eu sempre imaginei que a saída e a entrada de todo mistério não desvendado tem que ser por uma buceta. E os bebês me parecem extraterrestres. Depois é que vão se definindo com essa forma humana. O movimento do bebê no útero tem a mesma velocidade de um astronauta no espaço, e o cordão umbilical é aquele ducto gigante que liga o viajante do espaço a sua nave-útero. Básico.

Aí acendi um cigarro. A moça do bar trouxe cinzeiro e abriu mais uma cerveja.

Acho que as pessoas fumam porque essa porra do cigarro constrói uma sinceridade maior no ato da comunicação. É raro construir essa redoma ideal. Quando duas pessoas estão juntas, cada uma delas está pensando em milhares de outras coisas e pessoas. No momento em que se acende o cigarro, muda tudo. É uma espécie de aviso: Ok, agora eu estou aqui pra você. Fale-me o que pensa.

Com exceção do zen budismo, ninguém inventou nada melhor pra construir uma atmosfera real de sinceridade do que o cigarro. Como a meditação exige disciplina e comportamento íntegro e destinado à prática de atingir a iluminação, torna-se mais fácil ir até uma banquinha e comprar um maço de cigarros.

É que virou cafona: fumar ou morrer. Todo mundo se quer eterno e saudável. É proibido envelhecer. É proibido fumar. É terminantemente proibido jogar fumaça para os pulmões. As crianças sofrem com a fumaça do cigarro. Seres que sabem respirar do jeito que tem de ser, não precisam criar uma atmosfera artificial de comunicação pois já atingiram isso da forma mais natural. Uma criança está sempre se comunicando. Então, as crianças que tenham um pouco de piedade e deixem os fumantes se matarem em sua santa paz.

Posso fumar perto de ti? E ela respondeu: Ok!, sem problemas – só por educação, pois eu vi que ela se esquivou um pouco quando eu dei a primeira tragada (o que eu ignorei completamente, pois eu já estava me comunicando) – mas logo depois que eu acendi o cigarro ela se danou a falar sobre o curta e sobre essa coisa de A origem do mundo.

Aos poucos, a noite foi caindo e eu já estava com a cabeça povoada de bebês boiando leves e suaves dentro do útero de minha embriaguez. Mas foi só isso, porque ela não estava a fim de interagir fisicamente. Quando as mesas, inclusive a nossa, ficou cheia de outras pessoas que não estavam ali antes, ela pôs a touca de lã na cabeça e se mandou. É óbvio que eu fiquei tomada por uma nostalgia filha da puta e pela sensação de que, por mais que eu tenha me esforçado para avançar nessa coisa do roteiro que ela estava montando na cabeça, por mais que eu tenha me esforçado para “colaborar”, eu estava mesmo era interessada em saber se alguma coisa ia evoluir daquela conversa, alguma outra coisa que não fosse só conversa. E com isso me senti tão idiota quanto um imbecil comandado por um pau no meio das pernas que sai de casa com o fim exclusivo de caçar bucetas. Tratei de me corrigir quando notei que era como se eu também tivesse um pau incômodo entre as pernas que não me deixava interagir com nenhuma garota sem pensar que eu queria, que eu poderia, que eu desejaria ardentemente fodê-la. Mas por quê-la? Afinal eu podia, como eu bem sabia fazer, ficar bem em conversar com alguém. Pensar com o pau é algo tenso, ansioso, não dá uma folga pra que a conversa aconteça.

Portanto, estando melancólica e sabedora dessa condição, a sequência era me afundar mais no buraco negro daquela noite. A garota havia ido embora e eu tinha uma lacuna dentro do coração, tipo aqueles espaços nas células para entrada e saída de nutrientes – cada célula minha era um coração cheio de espaços em branco precisando de alimento. Um alimento que acendesse tudo por dentro e esvaísse para os olhos e para boca e se recuperasse sempre a cada respiração. Mas como isso, se eu estava totalmente  entupida de fumaça de cigarro e cada vez mais embriagada?

Até que minha melancolia suicida foi percebida por um garoto meio com cara de Morrissey que chegou em mim e falou: E aí? Tá a fim de ir pra um outro bar? Ok! Podemos. E saímos dali engolindo o ar frio da noite em passadas largas e entusiasmadas. Eu falei pra ele que estava pensando em comprar um celular. Ele me falou o quanto detestava quando colocavam o telefone naquele modo de ligação não identificada. E a gente ficou pensando que quando atendesse por distração e fosse uma pessoa disgusting por trás da linha podíamos imitar uma voz metálica dizendo: “Houve engano em sua ligação, por favor, consulte a lista telefônica”. E click. Hahahaha! Como era tranquilo caminhar de madrugada. Mas tranquilo pra quem? Depois que soubemos da morte a balaço do garoto negro que distribuía as nossas emoções garantidas no bar mais legal da cidade nada nunca mais foi tão tranquilo assim.

O meu novo amigo usava um daqueles coturnos pretos com cadarços longos. Era meio moda usar isso. Eu nunca entendi muito bem. Mas nele ficava cool. As pernas magras numa calça vermelha apertada e uma jaqueta jeans com bolsos na frente em que ele enfiava as mãos e andava assim, como um bicho-cotovelos, rindo e falando o tempo todo com um sorriso enorme no rosto e uns olhos vivos a cada vez que inventava uma ideia nova. É. Aquilo era bom. Estávamos interagindo. E sem cigarro.

Chegamos no outro bar. Um bem maior, cheio de escadas que levavam para um porão com outras tantas mesas de sinuca. E umas saídas que davam pra um jardinzinho tipo quintal, com bancos de praça e grama, era lá que se podia fumar os beques sem se preocupar. Era só chegar e tragar. Pegamos uma cerveja, umas fichas de sinuca e fomos pra lá. A música vinha até nós Venus as a boy…

O melhor de tudo é que quando não estávamos prestando atenção em ninguém todos começaram a prestar atenção em nós. Estava tudo bem ali, nós dois. O nome dele era Wagner. Como? Wagner, como o pianista. E o seu? Eu sou a Sylvia. Como a Sylvia Plath.

Escuta, Wagner, por acaso você não sabe de algum lugar pra alugar? Tou querendo vir morar aqui pelo centro.

Agora começava a tocar Hey…

 

 

Assionara Souza é escritora radicada em Curitiba. Autora dos livros Cecilia não é um cachimbo; Os hábitos e os monges, Na rua: a caminho do circo; e sua obra Amanhã. Com sorvete! foi traduzida no México pela tradutora e poeta Brenda Ríos.

 

Foto de Bárbara Tanaka.

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Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Vida comum parte 1 0 5168

Vida comum parte 1

Véspera de feriado, antes da meia-noite e eu já com meia garrafa de conhaque na mente. Curtia me derreter no gole, de dose, de lata, de garrafa, de todo jeito. No feriado rolou um churrascão que nem lembro se comi, dropei umas caipiras antes de acender o fogo e fiquei mais preocupado com a temperatura das garrafas que da carne. Sábado a ressaca com a mão pesada, tava batendo forte, contra-ataquei com uns latão, encostado nos fundos do posto com a rapeize, só flagrando os doidinho tirando uns racha de Parati, Chevette e Gol Chaleira. Domingo rolou rave na região metropolitana, no meio do mato, não virava ir de bonde, botei uma gasolina na Bizz e meti o pé; duas carteiras de Minister depois já tinha descido whisky com energético, vodka com suco, vários ampola, um doce e umas água colorida que os parceiro botaram, sei lá qual fita, puta gosto de remédio. Bati a nave antes da hora, cheguei em Grayskull sem nem aproveitar a viagem, ensaiava falar e não saia voz, tava tenso, me mordendo, fiquei nervoso: deu bad. Tentei endireitar a caminhada tomando umas águas, mas não rolou, a conta não batia, os dentes rangendo, coração agitado querendo se mudar do peito. Precisava voltar pra minha goma, tomar um banho, talvez dois, sei lá, só precisava vazar, montei na moto e fui. Tava com dois IPVA atrasados, cabreiro de cair numa blitz, e se soprasse um bafômetro explodia a máquina – certeza. Queria chegar logo, entrei no modo Valentino Rossi e corri a milhão, como se fosse fuga. Foi aí que deu ruim no piloto automático, se pá que dormi em cima do jato, lembro só de uns clarão, uns flash. Vi o céu por baixo, deitado no asfalto, sei lá qual fita, tudo nublado, que dia bosta. Me liguei e já tava todo remendado no hospital, numa sala com umas vinte cabeça, todo mundo fudido, uns mais outros menos. Eu? Era cabeça de chave do grupo dos desgraçados: com a lata do frankstein, olho roxo, cara inchada, nariz quebrado, uns ponto na testa. Trinquei uma costela e quebrei outras duas, a clavícula rachou e a mão tava na carne viva. O médico foi desenrolando essa lista aí e eu aceitando na moral, os pensamentos embaçados, cheio de analgésico, todo bagunçado de dor. Aí teve uma mão que ele deu uma pausa, ficou mais bolado e mandou A real: disse que eu sofri um choque cabuloso no quadril, perdi mais de 80% do fígado, que num tinha como dizer o tamanho real do estrago, mais uma fita era certa, nunca mais ia poder beber, se tomar meia lata que seja, posso encomendar o caixão. Acordei umas três vezes crente que tava tendo um pesadelo, foquei umas horas que tava numa brisa errada de doce. Mas não. A vida é uma viagem desgraçada.