
O anonimato é vedado pela Constituição brasileira. Pode parecer uma coisa simples, Juba, mas na prática quer dizer que todo mundo tem a obrigação de ser alguém, e eu já não sei mais o que sou. Me desculpe, mas o velório mexeu um pouco com a minha cabeça. Mesmo você, antes de ser a árvore que fez sombra para os melhores dias de minha vida com a Cida, precisou ser registrado como Salix babylonica. Um salgueiro chorão com nome e sobrenome. Juba, na intimidade do nosso lar. Lembro que foi você quem nos fez comprar essa casa, que parecia ter sido pensada para uma vida de finais de semana.
Quando eu chegava em casa e podia sentar na varanda, tragando o meu charuto e observando seus arbustos balançando com o vento enquanto esperava pelo beijo da minha Cida a anunciar o jantar, despia-me dos dias úteis e tinha a impressão que a vida era uma experiência que valia a pena. Todo mundo deveria viver ao menos uma vez. Com as pessoas certas, pode ser incrível.
Desde os tempos da escola eu sempre fui meio abaixo da média, e isso parecia estar estampado em minha face, porque onde quer que eu fosse todos pareciam reconhecer o fato sem demora, de maneira que me acostumei com a ideia. Foi estranho quando conheci a Cida, e na sua terceira frase me disse que passaria a me chamar de Joaquim, como o médico que a trouxe à vida depois de uma gravidez de risco de sua mãe e, segundo consta, um homem de uma simplicidade tão profunda que seria capaz de dispersar uma multidão raivosa com apenas um sorriso. Dezenove anos e ninguém tinha sido generoso comigo até então, mas a Cida só precisou de uma frase. Ela nunca pretendeu ser uma boa pessoa, mas enxergava o melhor em cada um. Não lhe passava pela cabeça a ideia de fazer algo que ajudasse alguém, que pudesse a vir ser reconhecido mais tarde, ou ainda fazer com que eu me apaixonasse por ela com uma simples frase de sete palavras. Sem que percebesse, ao ver o pobre caminhando começava a repartir o pão que tinha em mãos e dava-lhe o maior pedaço. Um instinto incontrolável de mudar o mundo.
Foi assim que nos conhecemos, e foi assim que ela salvou nossos muitos anos juntos. Sem se preocupar em sermos especiais, tínhamos tempo para sermos nós mesmos. Podíamos sentar aqui, olhando para você, e passar uma tarde inteira conversando sobre besteiras cotidianas, porque no fundo são as amenidades que nos aproximam daqueles que amamos. E assim continuamos juntos até o final.
A essa altura você já deve ter percebido que eu só vim até aqui pra me despedir, né Juba? Aproveitei que a família ainda está no velório e passei pra ter dar um último abraço antes que alguma força metafísica me leve para onde eu deva ficar. Mas eu vou tranquilo, porque sei que a cada vez que ela sentar ao seu lado, vai lembrar que aqui pudemos ser anônimos. Que aqui, nossa vida foi feita de finais de semana.
Texto de André Petrini.