
Hoje a cerração veio baixa, mas o sol não rachou. Agradeci a Deus porque já tem tempo que a estiagem preocupa e se viesse sol a gente ia precisar de mais água que o normal. Eu agradeço muito a Deus. Mas o sol não rachou e no fim não era cerração, era um tipo de fumaça que não foi embora. O dia ficou seco e quente, firme e forte, a neblina não ajudava nada e acabamos precisando de muita água mesmo assim.
Tem um cheiro de carniça que nunca sai do prédio onde trabalho. Parece que tá preso nas paredes, parece que misturaram carne podre com concreto pra construir. A explicação mais óbvia, a gente sabe, é que eles jogam todo bicho que morre na valeta que fica bem do lado. Eu tenho uma versão de que gosto mais, que é a do suicídio. Pra mim aquilo lá é um ponto comum pra suicídio, e não de humano, de animal mesmo. Cachorro deprimido, cavalo deprimido. Vão ali e pulam. Enfim, eu penso nessas coisas. Foi um dia desgraçadamente pesado porque com calor fede mais. Aí fica tudo chato, o trabalho fica chato. O nariz fica assado e parece que nada nunca tá limpo, mas tudo bem, que agora esfriou um pouco.
Em tempos de seca o pessoal não devia lavar os vidros. Eu já tentei explicar lá na firma, mas só me mandam calar a boca. Faz o teu trabalho e cala a boca, é o que falam os chefes. Tentei explicar pros meus colegas e eles dizem Rapaz, relaxa, quem tá fazendo errado são eles, você só tá aqui pra pagar as contas, e eu entendo como eles pensam, mas acho que o que se gasta é de todo mundo. Eu não me importo com o certo e errado, me importo com a falta d’água. Desci na minha corda, lavando e economizando o máximo que conseguia.
Lá pelo fim do expediente alguém em uma janela perto de onde eu tava colocou uma música pra tocar bem alto. Eu nunca tinha ouvido uma melodia tão bonita, e eu conheço muitas melodias muito bonitas. Um tempo atrás pensei sobre os tantos temas musicais maravilhosos que existem e sobre como nós só temos duas opções quanto a isso: ou entristecemos e lamentamos o fato de que jamais vamos conhecer nada, pois são tantos; ou agradecemos ao acaso toda vez que essas músicas aparecem na nossa vida. Eu lembrei disso e chorei um pouco, que eu gosto dessa ideia e me emociono bastante com canção. Enquanto eu ia embora fiquei repetindo um trecho que decorei do refrão, pra ver se depois descobria de quem era.
Até que cheguei em casa e me alegrei de volta, finalmente, porque meu pai morreu faz uns dias e agora isso aqui é meu. Não lembro muito disso quando estou no trabalho, mas é só entrar por essa porta que a presença da ausência dele faz meu coração se encher de alegria. O apartamento tava quase fresco e não tinha cerração, e agora tá até caindo uma garoinha lá fora. Bem gostoso.
Quem nasce no pecado não costuma chegar muito perto da vitória, mas aos poucos eu tô chegando, ainda que sem querer. Eu sou só um menino bom tentando sobreviver numa cidade maluca – e com preguiça demais pra desistir.
por Rômulo Candal
fotografia: Sunset Noir via Compfight cc