
Pela primeira vez Pérsio sentiu que ficaria para trás e juntar-se-ia aos esquecimentos de Irene. A ideia de uma partida não era novidade, mas habitava o canto das possibilidades que ignoramos existir. Ela iria embora e o partir seria logo.
Desde então, Pérsio trocou noites de sono pelas buscas incessantes por alguma possibilidade que lhe permitisse um mesmo espaço n’algum tempo com Irene. Mas nada. Destas madrugadas, apenas restos de cigarros no cinzeiro à janela do quarto e algumas garrafas de vinho sequer esvaziadas.
Como última tentativa de manter alguma proximidade, deu o livro de sua vida a ela, para que levasse a seus novos horizontes. O livro verde, que a acompanharia à cabeceira, sendo testemunha de seus novos amores. Imaginava um tanto de si ali, pertinho de Irene, velando seus sonhos, adivinhando o momento em que acordaria. A mesma Irene que agora ia longe, cavando uma distância que se alimenta do sentimento que apequena as almas.
Por vezes imaginava onde ela estaria entre as páginas do livro. Pensava nas conversas que teriam sobre seus trechos preferidos, se chorou na parte em que as formigas tomaram conta de tudo. Como quem tentasse se inserir na ficção, diria aquele era o anúncio do fim, percebeu?
Verdade é que nunca soube onde ela guardou o livro, apenas que não o leu e nunca pôde lhe dizer acho triste. No fundo sabia: ninguém se importa com as lágrimas que correram por isso e já secaram. Apenas ele, só.
Quando damos um livro que lemos a alguém, entregamos um tanto de nós, um porvir, queremos que o outro sinta o que sentimos. Que sejamos. Dar um livro é uma forma de ser maior, um desejo de existir com o outro. Compartilhamos o mundo não como ele é, mas como deveria ser. Uma esperança.
É ser o livro aonde quer que ele possa ser lido. E quando fechado, universos que se movimentam nas nossas memórias que não cansam de nos editar, até chegarmos ao que lembraremos pelo resto de todos os dias. A vida nos é como a sentimos.
Construímos modelos que se recombinam e dão rumo a nossos destinos, que só fazem sentido para quem insiste em descrevê-los de maneira objetiva. No fundo, a razão só existe para os livros que buscam a exatidão, mesmo com a certeza de que não resistiriam sob as intempéries da vida. Um dia de chuva basta para devastar qualquer teoria desprotegida sobre um banco de praça.
A vida tem dessas. Traduzida na infância, revela-se indecifrável em nossas primeiras solidões, mas, cedo ou tarde, acaba por nos ensinar a vivê-la.
E foi com a alma encolhida diante da aparente infinitude da solidão que Irene preencheu sua distância de Pérsio. Talvez um livro tenha sido exagerado para dar seguimento ao episódio em que os dois coincidiram. Um marcador de páginas daria conta desta lembrança.
Já não sabem de seus dias, sequer do livro verde recheado com mensagens escondidas nas páginas fechadas à espera da tempestade que lhes transformará em esquecimento.
texto: Rafael Antunes
ilustração: Anna Vörös