
Olhou pro relógio e ainda faltavam 39 minutos pra poder sair dali. Teria 15 dias livres pela frente. Depois de um mês regado a garoas constantes e chuvas torrenciais que insistiam em cair nos piores momentos (normalmente minutos antes do encerramento do expediente), um raro dia de sol.
Apesar da alegria efusiva dos colegas de trabalho, que compartilhavam planos sobre as férias coletivas, não conseguia sentir a mesma empolgação. Não tinha planos. Sequer dinheiro para improvisar uma viagem bate-e-volta – que fosse -, ao litoral.
Estava imersa em sentimentos confusos. A mudança de clima, ainda que positiva, só piorava a instabilidade. Com as nuvens, sentia-se confortável – cinzas, inexpressivas, melancólicas. O sol, pelo contrário, pedia urgência e disposição.
Tudo começou com detalhes mínimos. Percebeu que ele era péssimo em equilibrar nutricionalmente o prato do buffet por quilo (o amarelo dos carboidratos predominava, sempre). Passava um café aguado (em dias de ressaca, sequer fazia efeito). Escolhia músicas que ninguém conhecia nas noites de karaokê (o rei em esvaziar a pista). Vestia as meias e amarrava os tênis com uma lentidão capaz de os fazer perder os horários do ônibus (aos domingos, principalmente).
O amor acaba e isso já sabia. Só não imaginava que a indiferença e o desejo de afastamento pudessem surgir com tanta força.
Esperou ansiosamente por aquela viagem de trem ao litoral. O domingo regado a filmes e junk food. O passeio de bicicleta no Barigui. O jantar naquele novo restaurante vegano que todo mundo tirou fotos e postou no Instagram.
Contava os dias, imaginava situações e planejava cada mínimo detalhe. Seriam grandes eventos. A dois e inesquecíveis, na medida do possível.
Nada aconteceu. Incompatibilidade de agendas, falta de tempo, outras prioridades.
Ainda que fingisse não ligar para os cancelamentos, sabia que era o fim – cada vez mais próximo. Em algum momento, aquele quem elogiava pra todas as amigas, tornou-se repugnante. Um completo desconhecido, digno de indiferença e incentivador de escapadas pelo mundo.
Sentiu o mundo desabar. E o ego imperar. “Ninguém tem o direito de me fazer infeliz”. Quis apagar cada detalhe. Passado, presente, planos futuros. Esquecer que também escolheu vivenciar aquele verdadeiro-e-inevitável-fracasso.
Responsabilizar-se por isso pesou. E como pesou.
Numa noite, sonhou que fugia. Atingiu o limite no parapeito de um prédio. Pernas tremendo, vento gelado na cara, pensamentos incessantes. Do alto, sem fôlego e sem saída, avistou um cavalo branco na calçada. Nenhum cavaleiro. A única chance. Atirou-se.
Caiu na sela, ajeitou o corpo como pode. O cavalo saiu trotando pela rua, enquanto carros desviavam, buzinando.
Nenhum arranhão. Estava salva.
Foi a primeira vez que se sentiu, enfim, livre. “Uma nova jornada exige protagonismo e disposição plena”, estabeleceu. Procurou-o, terminou tudo. Cada um pro seu canto. “É melhor assim”.
Não sabe quantas quedas salvas pelo cavalo branco ainda tem à disposição. Apenas entende que o amor é uma necessidade comum que envolve caminhos paralelos e desejos distintos.
No fim das contas, é cada um em seu barco, com uma vela capenga. Em comum, só a tormenta.
Ou coisa parecida. Pelo menos teria 15 dias pra pensar nisso.
Escrito por Priscilla Scurupa
Ilustrado por Caroline Rehbein