Cruzeiro até o fim da Terra 0 989

Eu pilotava uma scooter alugada pela Rua Eilat, a poucas quadras da Telavivian Gallery e olhava as vitrines das lojas que estavam, em sua maioria, fechadas. Não usava capacete e sentia o vento seco no rosto. A alameda estava livre, sem tráfego. Parecia ser domingo de manhã. A última vez que havia olhado para o calendário, ainda era quinta-feira. Sem transeuntes ou vendedores, a rua parecia um deserto. Talvez fosse porque estávamos no deserto. Aquela aglomeração de concreto e vidro, com algumas árvores esparsas e uns poucos carros estacionados eram apenas maquiagem. O clima árido e solitário me atacava, mas a ideia de que logo chegaria às praias de Jaffa me trazia alívio.

Pilotei por mais alguns metros e, quando cheguei aos quarteirões mais próximos do mar, tive a impressão de que aquela não era a Rua Eilat, aquela não era Tel Aviv. Era a Rua Mena Barreto (ou a Paulino Fernandes, ou a Nelson Mandela, não lembro muito bem), em pleno bairro Botafogo, sendo bombardeada pelo sol de mais de quarenta graus da capital carioca. Quando cheguei à esquina, entrei na Rua Voluntários da Pátria. Pilotei rumo ao mar. As lojas também estavam todas fechadas, com vitrines exibindo seus manequins nus. Segui até o fim. Achei que estava enganado e que quando a rua acabasse eu chegaria às areias de Jaffa. Parecia só uma pequena falha de perspectiva.

Mas, quando enfim enxerguei o mar e me aproximei da areia, era o Pão de Açúcar que estava no meio da baía, pairando sob as águas do Atlântico. Não era o horizonte sem fim da costa do Mediterrâneo. Abandonei a scooter perto de uma árvore e corri até a areia, deixando os sapatos para trás. Cai no mar e nadei por alguns metros, sentindo a água salgada arder. No terceiro mergulho, abri os olhos enquanto estava submerso e eles queimaram, mesmo assim, pude enxergar as luzes no fundo. Mergulhadores trabalhavam no centro da baía, vários deles nadavam em volta de equipamentos conectados por cabos a um grande barco na superfície. Voltei, respirei fundo e submergi em direção a eles, mas não consegui nadar muito e logo perdi o fôlego. Voltei para sugar mais ar e mergulhei de novo, desta vez determinado em ir um pouco mais fundo, mas os mergulhadores haviam desaparecido. Imagino que haviam terminado o trabalho naquele ponto e migraram para outro, um pouco mais adiante. A profundidade e a escuridão impediam meus olhos de alcançá-los. Nadei de volta para a areia.

Enquanto me secava, percebi que o cenário estava confuso de novo. O Pão de Açúcar, o teleférico, a Avenida das Nações Unidas haviam se transfigurado. Ao fim da areia estava a Casa do Mar, ladeada pelo Jardim de HaMidron e o Museu de Jaffa, a uns poucos quilômetros da fronteira de Gaza. Minha scooter permanecia parada ao lado de uma árvore. Montei novamente e pilotei pela Avenida Yerushalayim, que exibia suas palmeiras verdejantes e, dando a volta pelo belo Parque Midron Yaffo, segui por mais algum tempo até chegar ao Porto de Jaffa, de onde partia um pequeno barco que me levaria de volta ao navio em alto mar. Parei a motocicleta a poucos metros do cais e depois de entregar as chaves a um rapaz de uniforme azul, caminhei em direção ao barco. Um dos membros da tripulação me parou e entregou um cartão, seguido de uma toalha. Depois que sequei o rosto, ele me ofereceu água. Caminhei pelo pequeno convés até a popa, de onde observava o mar e o Sol que descia até ser engolido pelas águas do Mediterrâneo.

Ao chegar ao navio e subir até a torre, um garçom se aproximou com um copo cheio e me disse: “aproveite a vista Capitão. O senhor a tem como poucos”. Depois de fazer outra reverência, olhou com seus olhos fugidios e completou: “Mas lembre-se, esse lugar não é para sempre”. Educadamente fez a terceira reverência e me deixou sozinho. Após tomar a bebida, olhei com tristeza para mais uma noite que estava prestes a chegar. Somente ao fim do crepúsculo é que os demais viajantes começaram a aparecer. Eu voltaria a conduzir o navio em poucos minutos. Depois de tantas voltas ao mundo, os lugares perdem a singularidade. Sinto falta de casa, mas não lembro mais onde fica. Uma circunavegação completa a cada vinte e oito dias. Voltas e mais voltas, como a Lua. O Sol e o sal ardem na praia em um dia quente. A viagem é sempre até o fim da noite. Só os arquétipos resistem, os nomes próprios se vão e o barco segue cortando indiscriminadamente as águas de qualquer oceano que se oponha. O cruzeiro até o fim da Terra não existe, é um circulo vicioso.

 

 

Texto: Jadson André

Ilustração: Caroline Rehbein

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Escala de Baumé 0 5005

Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Vida comum parte 1 0 5168

Vida comum parte 1

Véspera de feriado, antes da meia-noite e eu já com meia garrafa de conhaque na mente. Curtia me derreter no gole, de dose, de lata, de garrafa, de todo jeito. No feriado rolou um churrascão que nem lembro se comi, dropei umas caipiras antes de acender o fogo e fiquei mais preocupado com a temperatura das garrafas que da carne. Sábado a ressaca com a mão pesada, tava batendo forte, contra-ataquei com uns latão, encostado nos fundos do posto com a rapeize, só flagrando os doidinho tirando uns racha de Parati, Chevette e Gol Chaleira. Domingo rolou rave na região metropolitana, no meio do mato, não virava ir de bonde, botei uma gasolina na Bizz e meti o pé; duas carteiras de Minister depois já tinha descido whisky com energético, vodka com suco, vários ampola, um doce e umas água colorida que os parceiro botaram, sei lá qual fita, puta gosto de remédio. Bati a nave antes da hora, cheguei em Grayskull sem nem aproveitar a viagem, ensaiava falar e não saia voz, tava tenso, me mordendo, fiquei nervoso: deu bad. Tentei endireitar a caminhada tomando umas águas, mas não rolou, a conta não batia, os dentes rangendo, coração agitado querendo se mudar do peito. Precisava voltar pra minha goma, tomar um banho, talvez dois, sei lá, só precisava vazar, montei na moto e fui. Tava com dois IPVA atrasados, cabreiro de cair numa blitz, e se soprasse um bafômetro explodia a máquina – certeza. Queria chegar logo, entrei no modo Valentino Rossi e corri a milhão, como se fosse fuga. Foi aí que deu ruim no piloto automático, se pá que dormi em cima do jato, lembro só de uns clarão, uns flash. Vi o céu por baixo, deitado no asfalto, sei lá qual fita, tudo nublado, que dia bosta. Me liguei e já tava todo remendado no hospital, numa sala com umas vinte cabeça, todo mundo fudido, uns mais outros menos. Eu? Era cabeça de chave do grupo dos desgraçados: com a lata do frankstein, olho roxo, cara inchada, nariz quebrado, uns ponto na testa. Trinquei uma costela e quebrei outras duas, a clavícula rachou e a mão tava na carne viva. O médico foi desenrolando essa lista aí e eu aceitando na moral, os pensamentos embaçados, cheio de analgésico, todo bagunçado de dor. Aí teve uma mão que ele deu uma pausa, ficou mais bolado e mandou A real: disse que eu sofri um choque cabuloso no quadril, perdi mais de 80% do fígado, que num tinha como dizer o tamanho real do estrago, mais uma fita era certa, nunca mais ia poder beber, se tomar meia lata que seja, posso encomendar o caixão. Acordei umas três vezes crente que tava tendo um pesadelo, foquei umas horas que tava numa brisa errada de doce. Mas não. A vida é uma viagem desgraçada.