Yorkshire 3 1558

Sabrina disse que precisava de um cachorro de colo, se der yorkshire melhor, e de quinze dias na praia, porque no outono é mais vazio e mais barato. Turco, o marido, louco de amor e de vontade de evitar desconforto, aceitou a ideia e disse que daria um jeito. Ligou para um dono de bar do Bairro Alto atrás do contato de Jackson, o Polaco, ladrão de vários B.O. nas costas, que poderia ajudar no problema. Contratou o cara via instruções em áudios de whatsapp, irrastreáveis. Abriram o trabalho como homens adultos e polidos.

Jackson saiu de moto, às quatro, de seu emprego oficial em uma sapataria, com a desculpa de que precisaria ir até o Jardim Weissopolis buscar umas botas pra arrumar na casa de uma tia idosa. Queria sair antes do trânsito apertar. Faria um por fora com o que guardava nos fundos de casa. O que tenho deve dar. Qualquer coisa trago pra cá e a gente divide a grana, mas não quero cobrar nada da minha tia, não. Coitada. O chefe aceitou e disse então até amanhã para o funcionário que lhe dava menos dor de cabeça.

O motoqueiro pesquisou nos mercados do outro lado da cidade que conseguiu lembrar. Improvisou a rota no caminho. Cansou as pernas no Angeloni da Carlos de Carvalho e no Big da Rápida do Portão, mas fechou questão no estacionamento externo do Festval da 29 de março. Pegou um dogue pela janela entreaberta de um Peugeot de branco mais conservado que o das paredes da casa de Bruno, no Abranches, onde combinou de ir depois do golpe.

No sinaleiro da Brigadeiro Franco com a Manoel Ribas reparou num Corsa preto filmado que emparelhou em sua direita, na pista do meio. O motoqueiro rezou para o Yorkshire não latir de dentro da caixa de pizza, mas sorriu com o choro leve e abafado do bichinho. O edredon, transformado em tapete para sequestro, não tinha embolado na subida. O pequetico vivia. Jackson relaxou os dedos nas manoplas e olhou para cima. Sozinho no capacete, agradeceu a Deus e pegou esquerda quando o sinal abriu. Costurou até a Rosa Saporski. Olhou para o Hospital Nossa Senhora das Graças, onde nasceu, sem emoção. Respirou forte e rápido para se livrar do muco. Levantou a viseira e cuspiu. Contornou uma ambulância que ajeitava posição na rua e prosseguiu caminho.

Viu sobrados – samba e churrasco num bar de esquina – a antena da RPC – Mamoré –  esquerda – Posto – direita:  Alta Jacarezinho – Guido –  lombada; rotatória-guerra; esquerda – futebol de areia – reto – Antena – feira de rua – pizzaria – esquerda – Academia Gustavo Borges – direita – posto – reto – restaurantes – Rede Massa decorada – açougue com televisão de cachorro – descida – outdoors – esquerda – Band – fim da Hugo Simas – Cruz do Pilarzinho – Posto – pizzaria – Universal – farmácias – direita – Fredolin Wolf – antena – Bombeiros – posto – antena – o muro gramado da CNT – meninos e meninas jogando futebol de areia – pneus cheios e lombadas – leves esquerdas e direitas – espetinho de rua – um campão de futebol – uma unidade de saúde – hot dog da Novinha – uma santa exposta em outra parede gramada, na quina de uma casa – subiu uma quadra de morrinho – desceu uma quadra de morrinho; rotatória-paz; esquerda.

Abasteceu no posto BR da Igreja e seguiu caminho por vias simples da zona norte de Curitiba.

Chegou. Montanhas de Tamandaré de um lado, Barreirinha do outro. Esconderijo ao centro. O trabalho renderia novecentos reais, parte de Bruno pelo cativeiro. O anfitrião recebeu o motoca no gramadão que separava sua casa do portão, com uma limonada de limão de quintal na mão esquerda e o controle da televisão na outra.

– É o tal do Yorkshire?

– Aham. Foi na 29, comentou Jackson, liberando o cachorro de sua cela.

Os camaradas sentaram no chão, de frente para a casa grande e silenciosa. Bruno soltou o copo esvaziado na grama e reclamou acabou o quibe cru. Jackson soltou o bicho no chão, e ficou olhando seu andar trêmulo pelo terreno. Pernas bambas de susto e desinformação.

– A caixa da tua moto tá fedendo a mijo. Fala com esse Turco logo que hoje vou ver Tela Quente. Tá sem bateria?

– Telefoninho velho. Cadê carregador? Que filme que é

– Liga do meu ; aqui. Senha SWORDFISH com dáblio, tudo junto. Num lembro o filme, mas tem o Jackie Chan e o outro Jack, Jat, Jet, sei lá, que luta também

– Olhando agora até gostei desse coisa 

– Massa. Mas, né?, – acendeu um Hollywood vermelho e tossiu apontando com a mão – seiscentos e cinquenta, duzentos e cinquenta

– A Jennifer ia gostar também

Jackson queria acabar logo com aquilo e tomar qualquer vodka, desde que não Raizov, ou qualquer conhaque, desde que não Presidente. Faltavam quatro dias para o prazo do pagamento da luz e uma semana para precisar de um novo botijão de gás. Ligou para seu contratante.

– Faz assim. Quebrou o iPhone da Muié e tô do lado do Mueller esperando esse negócio, mas já que busco, belezinha?

– Antes das dez?

– Te ligo, tá bom. Yorkshire?

– Yorkshire, meu. Meio cor de terra. Sei lá cor …

– Olôco

– … parece meu travesseiro.

– Ah, parece? Tá dormindo aí? Escuta, papo sério, pra render bem mais: e gente? Já fez esse tipo de coisa com gente também?

– Depende. Quem quer saber e de que gente cê tá falando?

– É eu que quero saber. A gente é minha mulher, mas fala baixo, louco.

 

*    *    *    *    *

 

Ilustração Nina Zambiassi

Texto Marco Antonio Santos

 

*    *    *    *    *

Da mesma série

DébitoPablo23h59Cidade do alémBatata fritaJogos vorazes, Primavera

 

 

Previous ArticleNext Article

3 Comments

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Escala de Baumé 0 5023

Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Vida comum parte 1 0 5176

Vida comum parte 1

Véspera de feriado, antes da meia-noite e eu já com meia garrafa de conhaque na mente. Curtia me derreter no gole, de dose, de lata, de garrafa, de todo jeito. No feriado rolou um churrascão que nem lembro se comi, dropei umas caipiras antes de acender o fogo e fiquei mais preocupado com a temperatura das garrafas que da carne. Sábado a ressaca com a mão pesada, tava batendo forte, contra-ataquei com uns latão, encostado nos fundos do posto com a rapeize, só flagrando os doidinho tirando uns racha de Parati, Chevette e Gol Chaleira. Domingo rolou rave na região metropolitana, no meio do mato, não virava ir de bonde, botei uma gasolina na Bizz e meti o pé; duas carteiras de Minister depois já tinha descido whisky com energético, vodka com suco, vários ampola, um doce e umas água colorida que os parceiro botaram, sei lá qual fita, puta gosto de remédio. Bati a nave antes da hora, cheguei em Grayskull sem nem aproveitar a viagem, ensaiava falar e não saia voz, tava tenso, me mordendo, fiquei nervoso: deu bad. Tentei endireitar a caminhada tomando umas águas, mas não rolou, a conta não batia, os dentes rangendo, coração agitado querendo se mudar do peito. Precisava voltar pra minha goma, tomar um banho, talvez dois, sei lá, só precisava vazar, montei na moto e fui. Tava com dois IPVA atrasados, cabreiro de cair numa blitz, e se soprasse um bafômetro explodia a máquina – certeza. Queria chegar logo, entrei no modo Valentino Rossi e corri a milhão, como se fosse fuga. Foi aí que deu ruim no piloto automático, se pá que dormi em cima do jato, lembro só de uns clarão, uns flash. Vi o céu por baixo, deitado no asfalto, sei lá qual fita, tudo nublado, que dia bosta. Me liguei e já tava todo remendado no hospital, numa sala com umas vinte cabeça, todo mundo fudido, uns mais outros menos. Eu? Era cabeça de chave do grupo dos desgraçados: com a lata do frankstein, olho roxo, cara inchada, nariz quebrado, uns ponto na testa. Trinquei uma costela e quebrei outras duas, a clavícula rachou e a mão tava na carne viva. O médico foi desenrolando essa lista aí e eu aceitando na moral, os pensamentos embaçados, cheio de analgésico, todo bagunçado de dor. Aí teve uma mão que ele deu uma pausa, ficou mais bolado e mandou A real: disse que eu sofri um choque cabuloso no quadril, perdi mais de 80% do fígado, que num tinha como dizer o tamanho real do estrago, mais uma fita era certa, nunca mais ia poder beber, se tomar meia lata que seja, posso encomendar o caixão. Acordei umas três vezes crente que tava tendo um pesadelo, foquei umas horas que tava numa brisa errada de doce. Mas não. A vida é uma viagem desgraçada.