
Anna fritou batata para si, sozinha em casa. Depois de tirar para esfriar esqueceu fogo ligado no alto e deitou para descansar os olhos.
O óleo queimou o fundo da panela, derreteu os cabos e manchou o azulejo das paredes, mais armários de fórmica e teto. A gordura espessa se alastrou.
Ela acordou com lágrimas de fumaça e tosse. Ficou doente na hora, de fuligem. Tapou o rosto com um sutiã de bojo reforçado e se esgueirou no nevoeiro rumo ao fogão. Os olhos arderam. Uma estufa tóxica em seu três-peças-de-fundo, no Campina do Siqueira. Tentou socorro, mas estava muda, com a garganta tão desmineralizada quanto o cérebro. Abriu a geladeira para respirar um pouco de ar puro. Olhou para o fogo: labareda: duende do inferno. Encheu um copão de água e jogou sobre o incêndio.
Tudo ficou preto. A vizinha Célia sentiu perigo e gritou alguma palavra que não deu para distinguir. Anna tropeçou numa caixa de pizza ao lado da geladeira, sem conseguir dar resposta. Enfiou a mão esquerda nos restos de um copo quebrado, espalhado sobre sua pá-de-catar-com-vassourinha. Ficou no chão.
Lembrou do dinheiro emprestado para uma amiga que só gostava de sentar para beber e falar do que não sabia. Bilíngue: português e groselha. A devolução da grana faria bem, porque ia precisar de pontos para fechar os buracos da mão que limpou na blusa branca. De olhos fechados e costas geladas no piso de concreto, sem revestimento, ouviu os cachorros do bairro e a vizinha mais perto. Lembrou de seu time-dos-sonhos de suicidas: Sócrates por coerência, Elis de louca, Getúlio – isolado e traído, Leila Lopes, Phillip Seymour Hoffmann de O Mestre, Walmor Chagas e Amy Winehouse – overdose de tristeza com o inferno que inventaram ao redor dela. Lembrou das equipes Kirchner. Tanta ideia mal-orientada sob o mesmo teto que olha. A casa era rosada de vergonha. Equívocos e pequenos golpes. Pequenos golpes e novos equívocos. Lembrou de cenas variadas de homens adultos chorando. Coisa feia, mas queria ver alguns dos caras, porque ainda era um pouco apaixonada por três deles. Lembrou que precisava responder uns whats. Lembrou do Mercadorama, ontem. A fila de quinze minutos não era culpa dos funcionários. Lembrou do motoboy do trampo e do filho recém-nascido dele, Rei Arthur. Lembrou de um cara-qualquer-de-buzzfeed que foi fotografar a Fukushima pós-tragédia para comer chocolate em algum supermercado abandonado. Lembrou de tomar a pílula anticoncepcional diária quando conseguisse levantar; que convivia com muita gente viciada em remédios; que precisava dormir melhor; que as roupas limpas no varal deixariam de sê-lo. Lembrou que odiava Franz Ferdinand, Eminem, Anitta, Fernando & Sorocaba, Wesley Safadão, Roberto Carlos, Jota Quest, Metallica, Iron Maiden, AC/DC, Caetano Veloso, a cópia Eduardo Costa, o original Zezé di Camargo, o irmão Luciano, Wanessa & Zilu.
Anna de rosto protegido, pronta para desmaiar. Célia atacou a porta e entrou, feita de luz e vento.
Ilustração Nina Zambiassi & Débora Berté
Texto Marco Antonio Santos
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