Paredes ou Prisões? 0 1071

Pouco depois das dez e meia, pedir a sexta dose de Campari pareceu uma ideia sensata, acredito que depois da terceira dose várias ideias questionáveis parecem ótimas, e algumas ruins se tornam boas. Subir no palco para cantar Evidências por exemplo, música difícil mesmo para um profissional, pior para quem desafina até para falar no telefone. Comemorar o aniversário dos amigos no karaokê tem dessas, sobriedade não é bem­-vinda e declinar desafios musicais não é de bom tom. Depois de explorar boa parte dos clássicos do pagode e do sertanejo, o cansaço enfim vence a vontade de passar vergonha, e é hora de ir embora.
 
Vou para casa pedalando, prometo aos meus amigos ser cauteloso. Não prometo nada para mim. O começo do trajeto é terrível, se pudessem minhas pernas gritariam por socorro, uma quadra de subida, uma plana, outra subida. Enfim chego até a ciclofaixa, oito quadras de descida. Grito de felicidade. Grito coisas sem sentido aparente, até o momento em que tudo passa a fazer muito sentido, mas apenas para mim: um amigo argentino passou suas férias na cidade e hospedou­-se em minha casa; em troca do abrigo, ele me lecionou algumas aulas de espanhol, foi esse o trato. Depois das aulas, já arrisco algumas palavras no outro idioma, depois de muita bebida já me sinto confortável para falar em um novo idioma: o portunhol.
 
Já que a proposta da noite era cantar, faço releituras em portunhol de todas as músicas que pouco antes executei (no sentido de assassinar) no palco: Entonces ayude me a segurar, esta barra que es gostar de usted. Ténia un sueño de ir a Nova York, levar la namorada. Castelhana si usted me ama, dime, nosotros podemos ser feliz. Enfim a descida acaba, a força da garganta volta a ser transferida para as pernas. Nesse momento só sussurro baixo algumas palavras no meu idioma. Região central da cidade, dominada pelo comércio, nove graus, ruas praticamente vazias. Mas não completamente. 
 
Em pé, no meio da calçada, tem um homem, sozinho, mal agasalhado e chorando. Chorando muito. Pergunto: Amigo, como está? Que passa? Ele responde que não sabe. Que sente coisas que não consegue dizer, desaprendeu a falar, nunca tem ninguém para ouvir. E que puesso hacer para ayudar? Um abraço, ele só pediu um abraço. Encosto minha bicicleta no muro, e abraço. Uma energia grave e pesada fez meu corpo tremer, o abraço transcende o plano físico, um oceano de sensações permeia minha alma. É como abraçar um irmão perdido. Alguém que eu conheci por toda a vida, mesmo sem saber seu nome. Como se llama? Oi? Como se chama? (com sotaque). Diego. Diego? Como Don Diego Maradona? Sim. Nos abraçamos mais forte. Também chorei enquanto fazia cafuné no seu cabelo. Todo emaranhado, sujo, descuidado. Há quanto tempo morava na rua? Quando foi seu último banho quente? Ainda sabia manejar um talher? Ao fim do abraço percebo que ele para de tremer, ainda assim, tiro minha blusa e ofereço a ele. Não quer. Me ofereço para achar algum botequim para lhe pagar um café e algo para comer. Também rejeita. E antes que eu possa fazer qualquer outra proposição, dispara: Hermano, já me deu tudo que precisava. Um pouco de atenção, um abraço, aconchego. Obrigado por sair do seu país pra isso. Hoje vou dormir bem.
 
Me despeço então com um abraço breve, me seguro­ para não desaguar. Monto em minha bicicleta e vou. Pedalo num pique só. Encaro a subida até minha casa em completo silêncio. Sento no sofá da sala e o conforto me incomoda. Toda a futilidade acumulada em minhas paredes e estantes, fruto de anos de dedicação à uma sociedade ególatra, me pungem com violência. Quero fugir, não sei para onde. Sei que é estranho se sentir estrangeiro em sua própria casa.

Escrito pelo Gabriel Protski

Ilustrado pelo Otávio Tersi

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Escala de Baumé 0 5003

Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Vida comum parte 1 0 5165

Vida comum parte 1

Véspera de feriado, antes da meia-noite e eu já com meia garrafa de conhaque na mente. Curtia me derreter no gole, de dose, de lata, de garrafa, de todo jeito. No feriado rolou um churrascão que nem lembro se comi, dropei umas caipiras antes de acender o fogo e fiquei mais preocupado com a temperatura das garrafas que da carne. Sábado a ressaca com a mão pesada, tava batendo forte, contra-ataquei com uns latão, encostado nos fundos do posto com a rapeize, só flagrando os doidinho tirando uns racha de Parati, Chevette e Gol Chaleira. Domingo rolou rave na região metropolitana, no meio do mato, não virava ir de bonde, botei uma gasolina na Bizz e meti o pé; duas carteiras de Minister depois já tinha descido whisky com energético, vodka com suco, vários ampola, um doce e umas água colorida que os parceiro botaram, sei lá qual fita, puta gosto de remédio. Bati a nave antes da hora, cheguei em Grayskull sem nem aproveitar a viagem, ensaiava falar e não saia voz, tava tenso, me mordendo, fiquei nervoso: deu bad. Tentei endireitar a caminhada tomando umas águas, mas não rolou, a conta não batia, os dentes rangendo, coração agitado querendo se mudar do peito. Precisava voltar pra minha goma, tomar um banho, talvez dois, sei lá, só precisava vazar, montei na moto e fui. Tava com dois IPVA atrasados, cabreiro de cair numa blitz, e se soprasse um bafômetro explodia a máquina – certeza. Queria chegar logo, entrei no modo Valentino Rossi e corri a milhão, como se fosse fuga. Foi aí que deu ruim no piloto automático, se pá que dormi em cima do jato, lembro só de uns clarão, uns flash. Vi o céu por baixo, deitado no asfalto, sei lá qual fita, tudo nublado, que dia bosta. Me liguei e já tava todo remendado no hospital, numa sala com umas vinte cabeça, todo mundo fudido, uns mais outros menos. Eu? Era cabeça de chave do grupo dos desgraçados: com a lata do frankstein, olho roxo, cara inchada, nariz quebrado, uns ponto na testa. Trinquei uma costela e quebrei outras duas, a clavícula rachou e a mão tava na carne viva. O médico foi desenrolando essa lista aí e eu aceitando na moral, os pensamentos embaçados, cheio de analgésico, todo bagunçado de dor. Aí teve uma mão que ele deu uma pausa, ficou mais bolado e mandou A real: disse que eu sofri um choque cabuloso no quadril, perdi mais de 80% do fígado, que num tinha como dizer o tamanho real do estrago, mais uma fita era certa, nunca mais ia poder beber, se tomar meia lata que seja, posso encomendar o caixão. Acordei umas três vezes crente que tava tendo um pesadelo, foquei umas horas que tava numa brisa errada de doce. Mas não. A vida é uma viagem desgraçada.