
Pouco depois das dez e meia, pedir a sexta dose de Campari pareceu uma ideia sensata, acredito que depois da terceira dose várias ideias questionáveis parecem ótimas, e algumas ruins se tornam boas. Subir no palco para cantar Evidências por exemplo, música difícil mesmo para um profissional, pior para quem desafina até para falar no telefone. Comemorar o aniversário dos amigos no karaokê tem dessas, sobriedade não é bem-vinda e declinar desafios musicais não é de bom tom. Depois de explorar boa parte dos clássicos do pagode e do sertanejo, o cansaço enfim vence a vontade de passar vergonha, e é hora de ir embora.
Vou para casa pedalando, prometo aos meus amigos ser cauteloso. Não prometo nada para mim. O começo do trajeto é terrível, se pudessem minhas pernas gritariam por socorro, uma quadra de subida, uma plana, outra subida. Enfim chego até a ciclofaixa, oito quadras de descida. Grito de felicidade. Grito coisas sem sentido aparente, até o momento em que tudo passa a fazer muito sentido, mas apenas para mim: um amigo argentino passou suas férias na cidade e hospedou-se em minha casa; em troca do abrigo, ele me lecionou algumas aulas de espanhol, foi esse o trato. Depois das aulas, já arrisco algumas palavras no outro idioma, depois de muita bebida já me sinto confortável para falar em um novo idioma: o portunhol.
Já que a proposta da noite era cantar, faço releituras em portunhol de todas as músicas que pouco antes executei (no sentido de assassinar) no palco: Entonces ayude me a segurar, esta barra que es gostar de usted. Ténia un sueño de ir a Nova York, levar la namorada. Castelhana si usted me ama, dime, nosotros podemos ser feliz. Enfim a descida acaba, a força da garganta volta a ser transferida para as pernas. Nesse momento só sussurro baixo algumas palavras no meu idioma. Região central da cidade, dominada pelo comércio, nove graus, ruas praticamente vazias. Mas não completamente.
Em pé, no meio da calçada, tem um homem, sozinho, mal agasalhado e chorando. Chorando muito. Pergunto: Amigo, como está? Que passa? Ele responde que não sabe. Que sente coisas que não consegue dizer, desaprendeu a falar, nunca tem ninguém para ouvir. E que puesso hacer para ayudar? Um abraço, ele só pediu um abraço. Encosto minha bicicleta no muro, e abraço. Uma energia grave e pesada fez meu corpo tremer, o abraço transcende o plano físico, um oceano de sensações permeia minha alma. É como abraçar um irmão perdido. Alguém que eu conheci por toda a vida, mesmo sem saber seu nome. Como se llama? Oi? Como se chama? (com sotaque). Diego. Diego? Como Don Diego Maradona? Sim. Nos abraçamos mais forte. Também chorei enquanto fazia cafuné no seu cabelo. Todo emaranhado, sujo, descuidado. Há quanto tempo morava na rua? Quando foi seu último banho quente? Ainda sabia manejar um talher? Ao fim do abraço percebo que ele para de tremer, ainda assim, tiro minha blusa e ofereço a ele. Não quer. Me ofereço para achar algum botequim para lhe pagar um café e algo para comer. Também rejeita. E antes que eu possa fazer qualquer outra proposição, dispara: Hermano, já me deu tudo que precisava. Um pouco de atenção, um abraço, aconchego. Obrigado por sair do seu país pra isso. Hoje vou dormir bem.
Me despeço então com um abraço breve, me seguro para não desaguar. Monto em minha bicicleta e vou. Pedalo num pique só. Encaro a subida até minha casa em completo silêncio. Sento no sofá da sala e o conforto me incomoda. Toda a futilidade acumulada em minhas paredes e estantes, fruto de anos de dedicação à uma sociedade ególatra, me pungem com violência. Quero fugir, não sei para onde. Sei que é estranho se sentir estrangeiro em sua própria casa.
Escrito pelo Gabriel Protski
Ilustrado pelo Otávio Tersi