
Entre o cruzamento de estradas radiais, transversais e longitudinais, cercada pela arquitetura corporativa e cidadãos engravatados – cuja sobriedade é transgredida por esquinas dispostas à margem, que denunciam cotidianos bem menos empresariais – situa-se a casa onde eu moro.
Posso escolher diferentes roteiros para chegar até ela. A noroeste, a paisagem nostálgica do centro histórico constrói o caminho do Largo da Ordem, num corredor aprazível quando em dia de sol, e ainda mais bonito quando este se põe. Abaixo, a alameda Augusto Stelfeld conduz com rapidez os motoristas apressados a bairros nobres da cidade, ávidos pelo desembarque em suas amplas e aconchegantes salas de estar, pelo controle da Smart TV, pelo aroma da cerveja importada. Numa rua transversal à minha transcorre a Cruz Machado, cenário de diversas lojinhas de produtos naturais e assistências técnicas que nunca têm as peças necessárias para o conserto prometido dos equipamentos. Acima dela, o restaurante-dançante-Pantera-Negra acomoda notívagos em qualquer grau de embriaguez. Completando o leque de itinerários que me escoltam à porta de casa, pouco mais ao sul, a rua onde moro desemboca precisamente na Boca Maldita. A praça, rodeada de cafés, de engraxates e de velhos cavaleiros jamais fartos de discutir política, é palco de um incessante ir-e-vir no calçadão da rua XV de Novembro.
Dentre todos, porém, o único caminho que como filha me acolhe perpassa um trecho da Saldanha Marinho. A rua se abre no coração da cidade e talvez por isso seja a fonte de todo o seu sentir, das pulsações, dos batimentos; surge na catedral da praça Tiradentes – o marco zero de Curitiba – e, como o preâmbulo de tudo que existe, é ali que a vida desperta. A cada passo em frente deixo atrás pequenos restaurantes, a casa de fumo, as bicicletas com garupa dos jovens entregadores de água mineral, os bares, os bares e os bares; de uma ponta da quadra à outra, numa ocasião, já topei com uma freira no início e uma prostituta no final, que compartilham o ambiente em respeito mútuo. Há espaço para qualquer semelhança e qualquer diferença naquele pedaço de mundo. Na Saldanha, a vida é permitida a todos e é privilégio de ninguém.
Passo por ali sempre que o acaso me possibilita escolher o rumo dos meus passos. Há quem a evite, quem a rejeite e até quem lhe sinta aversão, pelo estigma de ponto de venda de drogas, pela prostituição declarada, pelo andar soberano com que transitam as travestis. Mas ali sobrevive uma Curitiba de outros tempos, quando os prédios não apinhavam pessoas nem enriqueciam imobiliárias. As portas das casas ainda se abrem para as ruas, os vizinhos se reconhecem, há freiras e há prostitutas que preservam o valor da partilha.
O que mais me encanta é a presença de quem se reconhece como império duradouro, enquanto chega a zombar da má fama que lhe foi atribuída. A Saldanha tem uma postura inabalável de rua que já está na vida há muito tempo para dar corda a falatórios, a pequenezas dos burgueses, a cismas de quem não sabe a vida que desperdiça ao evitar suas calçadas. Convivem sem tensão donos de banquinhas e travestis; senhorinhas e senhorinhos entre sacolas de supermercado; eu, que transito a cantar. Jamais um desrespeito me foi proferido e nunca me senti insegura quando a atravesso, no andar ou no pedal, atenta ou distraída, ardente de saudades ou ansiosa para estar só.
Desde seu desabrochar, na Tiradentes, a Saldanha se prolonga por mais quatro quilômetros. Cinco ou seis quadras adiante, desaparece pouco a pouco a arquitetura nostálgica, que dá lugar a casas luxuosas no bairro nobre do Batel. Já li sobre a região e sei que os moradores reclamam dos assaltos e da violência. Mas violenta, para mim, é a profunda desigualdade que se escancara de uma extremidade à outra da rua, com excesso para uns e falta para tantos outros. Talvez eu goste de fazer dela meu trajeto cotidiano porque sinto que ali pulsa a mais inescapável dentre todas as verdades: das cortinas de seda aos moribundos e marginalizados, a Saldanha começa e termina gritando que o mundo é injusto.
Dia desses pesquisei sobre o sujeito que dá nome à rua. Saldanha Marinho foi mais um dentre os homens ricos e brancos que, segundo os relatos que nos contam, fizeram a História acontecer. Foi grão-mestre da maçonaria, deputado, senador, advogado, jornalista e tudo o mais que quisesse, porque as oportunidades seguem uma lógica diferente para quem tem dinheiro.
Se me fosse possível rebatizá-la, a rua se chamaria Carolina Maria de Jesus, escritora, preta, mulher, as portas batidas na cara, a voz dos sem-palavra. Fez poesia em cadernos que encontrava no lixo. Temos o mesmo nome, mas meu destino já foi outro desde que nasci: nunca me faltaram cadernos para escrever quando e o quanto quisesse.
Não há cortinas de seda capazes de abafar o grito da Saldanha. Eu volto por ali para ouvir sua algazarra, para lembrar-me sempre de que a vida é injusta; que entre Carolinas de mesmo sonho a desumanidade ergueu um imenso abismo. Munida da caneta e do papel eu preparo o gatilho. Há muito declarei guerra contra as atrocidades do mundo, e nessa batalha eu já me posicionei: estou do lado de cá da Saldanha Marinho.
por Carolina Goetten
carolina, adorei teu texto,como curitibano exilado a mais de 30 anos na suiça tinha “esquecido” da saldanha, nossa como pode,durante bom tempo caminhei da tiradentes ate a praça espanha, onde morava uma guria que era minha paixao na epoca, nunca pegava outra rua, nem tampouco o busao vicente machado, adorava caminhar por ela,estreita, sombreada, cheia de vida e lojinhas nas primeiras quadras,depois por tras da antiga secretaria de educaçao do pr, ate a rua larga que antes tinha um riacho com muitos choroes,depois canalizaram e cobriram o rio,fernando moreira? dai começava a subir ate a espanha, e ao paraiso que eram os beijos da minha amada. alem do bucolico do teu texto tmb gostei da analogia politica,onde a saldanha representa perfeitamente a cwb de ontem, e talvez de hj, ligaçao direta entre os puteiros atras da catedral e o burgues bem situado. obrigado por me lembrar.