Do lado de cá da Saldanha 1 1542

Entre o cruzamento de estradas radiais, transversais e longitudinais, cercada pela arquitetura corporativa e cidadãos engravatados – cuja sobriedade é transgredida por esquinas dispostas à margem, que denunciam cotidianos bem menos empresariais – situa-se a casa onde eu moro.

Posso escolher diferentes roteiros para chegar até ela. A noroeste, a paisagem nostálgica do centro histórico constrói o caminho do Largo da Ordem, num corredor aprazível quando em dia de sol, e ainda mais bonito quando este se põe. Abaixo, a alameda Augusto Stelfeld conduz com rapidez os motoristas apressados a bairros nobres da cidade, ávidos pelo desembarque em suas amplas e aconchegantes salas de estar, pelo controle da Smart TV, pelo aroma da cerveja importada. Numa rua transversal à minha transcorre a Cruz Machado, cenário de diversas lojinhas de produtos naturais e assistências técnicas que nunca têm as peças necessárias para o conserto prometido dos equipamentos. Acima dela, o restaurante-dançante-Pantera-Negra acomoda notívagos em qualquer grau de embriaguez. Completando o leque de itinerários que me escoltam à porta de casa, pouco mais ao sul, a rua onde moro desemboca precisamente na Boca Maldita. A praça, rodeada de cafés, de engraxates e de velhos cavaleiros jamais fartos de discutir política, é palco de um incessante ir-e-vir no calçadão da rua XV de Novembro.

Dentre todos, porém, o único caminho que como filha me acolhe perpassa um trecho da Saldanha Marinho. A rua se abre no coração da cidade e talvez por isso seja a fonte de todo o seu sentir, das pulsações, dos batimentos; surge na catedral da praça Tiradentes – o marco zero de Curitiba – e, como o preâmbulo de tudo que existe, é ali que a vida desperta. A cada passo em frente deixo atrás pequenos restaurantes, a casa de fumo, as bicicletas com garupa dos jovens entregadores de água mineral, os bares, os bares e os bares; de uma ponta da quadra à outra, numa ocasião, já topei com uma freira no início e uma prostituta no final, que compartilham o ambiente em respeito mútuo. Há espaço para qualquer semelhança e qualquer diferença naquele pedaço de mundo. Na Saldanha, a vida é permitida a todos e é privilégio de ninguém.

Passo por ali sempre que o acaso me possibilita escolher o rumo dos meus passos. Há quem a evite, quem a rejeite e até quem lhe sinta aversão, pelo estigma de ponto de venda de drogas, pela prostituição declarada, pelo andar soberano com que transitam as travestis. Mas ali sobrevive uma Curitiba de outros tempos, quando os prédios não apinhavam pessoas nem enriqueciam imobiliárias. As portas das casas ainda se abrem para as ruas, os vizinhos se reconhecem, há freiras e há prostitutas que preservam o valor da partilha.

O que mais me encanta é a presença de quem se reconhece como império duradouro, enquanto chega a zombar da má fama que lhe foi atribuída. A Saldanha tem uma postura inabalável de rua que já está na vida há muito tempo para dar corda a falatórios, a pequenezas dos burgueses, a cismas de quem não sabe a vida que desperdiça ao evitar suas calçadas. Convivem sem tensão donos de banquinhas e travestis; senhorinhas e senhorinhos entre sacolas de supermercado; eu, que transito a cantar. Jamais um desrespeito me foi proferido e nunca me senti insegura quando a atravesso, no andar ou no pedal, atenta ou distraída, ardente de saudades ou ansiosa para estar só.

Desde seu desabrochar, na Tiradentes, a Saldanha se prolonga por mais quatro quilômetros. Cinco ou seis quadras adiante, desaparece pouco a pouco a arquitetura nostálgica, que dá lugar a casas luxuosas no bairro nobre do Batel. Já li sobre a região e sei que os moradores reclamam dos assaltos e da violência. Mas violenta, para mim, é a profunda desigualdade que se escancara de uma extremidade à outra da rua, com excesso para uns e falta para tantos outros. Talvez eu goste de fazer dela meu trajeto cotidiano porque sinto que ali pulsa a mais inescapável dentre todas as verdades: das cortinas de seda aos moribundos e marginalizados, a Saldanha começa e termina gritando que o mundo é injusto.

Dia desses pesquisei sobre o sujeito que dá nome à rua. Saldanha Marinho foi mais um dentre os homens ricos e brancos que, segundo os relatos que nos contam, fizeram a História acontecer. Foi grão-mestre da maçonaria, deputado, senador, advogado, jornalista e tudo o mais que quisesse, porque as oportunidades seguem uma lógica diferente para quem tem dinheiro.

Se me fosse possível rebatizá-la, a rua se chamaria Carolina Maria de Jesus, escritora, preta, mulher, as portas batidas na cara, a voz dos sem-palavra. Fez poesia em cadernos que encontrava no lixo. Temos o mesmo nome, mas meu destino já foi outro desde que nasci: nunca me faltaram cadernos para escrever quando e o quanto quisesse.

Não há cortinas de seda capazes de abafar o grito da Saldanha. Eu volto por ali para ouvir sua algazarra, para lembrar-me sempre de que a vida é injusta; que entre Carolinas de mesmo sonho a desumanidade ergueu um imenso abismo. Munida da caneta e do papel eu preparo o gatilho. Há muito declarei guerra contra as atrocidades do mundo, e nessa batalha eu já me posicionei: estou do lado de cá da Saldanha Marinho.

por Carolina Goetten

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1 Comment

  1. carolina, adorei teu texto,como curitibano exilado a mais de 30 anos na suiça tinha “esquecido” da saldanha, nossa como pode,durante bom tempo caminhei da tiradentes ate a praça espanha, onde morava uma guria que era minha paixao na epoca, nunca pegava outra rua, nem tampouco o busao vicente machado, adorava caminhar por ela,estreita, sombreada, cheia de vida e lojinhas nas primeiras quadras,depois por tras da antiga secretaria de educaçao do pr, ate a rua larga que antes tinha um riacho com muitos choroes,depois canalizaram e cobriram o rio,fernando moreira? dai começava a subir ate a espanha, e ao paraiso que eram os beijos da minha amada. alem do bucolico do teu texto tmb gostei da analogia politica,onde a saldanha representa perfeitamente a cwb de ontem, e talvez de hj, ligaçao direta entre os puteiros atras da catedral e o burgues bem situado. obrigado por me lembrar.

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Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Chegada 0 6530

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, prepare a casa
e meu coração pulou afora
bateu amor por toda a cidade

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Ela está vindo!

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, mas levo ainda um pouquinho
e antes de te ter em meus braços
já tenho em todos os sonhos do mundo

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Minha menina vai chegar!

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, já não falta mais tanto
e prevendo as noites com você,
me vejo em claro sonhando

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Vou ser pai