
Minha alma sofre de sonambulismo. Enquanto durmo ela vaga pelos mundos. Até sua volta permaneço rígido e pesado, como uma pedra à espera de ser lapidada. Quando voltamos a nos metamorfosear, acordo transbordante das ideias e revelações que ela me trouxe.
Sempre fui dos que têm respeito por alguns rituais, em especial pelos que crio. Não sou dado à severidade, mas de uma coisa tenho certeza: não se faz Cuba Libre com Pepsi. Foram oito meses em que acordei antes das seis, e muitas vezes antes do sol, para correr. Poucos eventos me impediam de ganhar as ruas, mesmo algumas intempéries que podiam configurar-se em boas desculpas para não fazê-lo. Comecei a correr para me provar de que era capaz, continuei porque me apaixonei (algo recorrente em minha vida), desisti completamente por desinteresse e tristeza (algo ainda mais recorrente).
Era uma terça-feira. Acordei antes do despertador, com o coração tentando evadir o corpo. Outro pesadelo com prédios ruindo, caos; pessoas despencando das janelas, batendo as cabeças como formigas sem antenas. Tudo vai desmoronar, ou mesmo já desapareceu. O que entendemos por catástrofe, em algumas esferas não passa de estatística e ordem natural da vida. Só terapia à base de endorfina para afastar estes pensamentos. A urgência me impediu até de lavar o rosto, simplesmente fui.
Frio, comecei devagar, ainda ancorado pela desordem. Os pensamentos se perdiam nos labirintos que me habitam, transitavam nos rizomas intermináveis de temor e desalento que parecem embaraçar-se ainda mais nessas ocasiões, sentimento de estar encurralado pela própria sensibilidade. Já estava longe de casa, o medo de perder-me dentro de mim me obrigou a ser pragmático: dar quantas voltas fosse possível em torno da praça mais próxima, para não me afastar muito de casa. Tomar uma decisão firme auxiliou a abrir trincheiras nos pensamentos, o corpo a esquentar, a mente ansiando o esvaziamento.
Chego à praça pouco depois do sol. É um lugar agradável, simples, muita grama e uma quadra poliesportiva no meio. Corro muito, de mim mesmo, de tudo. Quando o que me afligia ficou algumas voltas para trás, comecei enfim a pensar no dia em que vivia; nos afazeres, nos planos, viagens, no café da manhã, na geada que começava a derreter, nas flores que resistiam, naquele mendigo estirado ao lado da quadra. Demorei mais uma volta para notar que o indigente não tinha nem cobertas e nem roupas grossas. Mais outra para ver que o corpo não se mexia, mesmo minimamente. Corri até lá.
De barriga para cima, com a testa franzida como quem engoliu as preocupações, o corpo daquele senhor ainda trazia algum calor, mesmo que mínimo. Mas ao menos no que tange o sentido clínico, já não carregava vida alguma. Não adiantaria tomar atitudes emergenciais, nem mesmo correr, sentei. Contemplei os ossos magros de suas mãos, suas rugas que emolduravam seu rosto, seu cabelo desbotado pelo tempo, sua roupa que parecia um pijama. Talvez não fosse um sem-teto. Também não parecia ter sido ferido, ao menos não em um local aparente, acaso em seus labirintos.
Enfim liguei para a ambulância, porque nunca me agradou ligar para a polícia. Velei seu corpo até o momento em que fecharam-se as portas do rabecão. Sua alma órfã e confusa porventura pode ter se aproximado da minha, já que sua imagem me visita com frequência, mesmo sem saber seu nome. Nunca mais fui àquela praça. Nunca mais corri. E nem preciso mais dos pesadelos para me certificar, todo império cai.
Gabriel Protski