Jogos vorazes 0 1257

O final de 2014 agredia até as ruas tranquilas do Portão, perto das Faculdades Bagozzi. Várias casas já estavam vestidas de Natal: lâmpadas de loja de um e noventa e nove, falsificações de vegetações estrangeiras, neve de algodão e papais noeis mais e menos gordos pendurados em muros, chaminés e janelas.

Quatro meninos marcaram encontro num fim de sexta-feira para construir um caixote. Era o terceiro ano seguido em que faziam das férias escolares dois meses de skate, bagunça, beber o que conseguissem arranjar e curtição inconsequentemente. Cada moleque trazia para a roda o que pudesse, desde que divertisse. Naquele momento festavam continuamente para anestesiar a transição entre primeiro e segundo ano do ensino médio. Os uniformes deram lugar a roupas corriqueiras: bermudas velhas, bonés, tênis e camisetas sujáveis.

Miguel chegou na Kombi verde do pai, o carro três da família. Tinham nela um veículo de bater e carregar peso. O clã levou ao encontro tábuas de compensado e vigas de faveira. Através de contatos, haviam recebido uma leva de madeira da região do cerrado. Pagaram para tratar o material e cortaram em casa, na serra de bancada que servia para pedidos do caçula. Em segunda aplicação, também usavam o equipo para construir pequenos móveis com que presenteavam parentes, amigos e parceiros comerciais do ramo da exportação. O velho, Tobias, aparou as arestas o quanto pôde, mas preferiu não correr risco de estragar o couro dos bancos de seu Civic, nem puxar fiapinhos do porta-malas; e queria menos ainda sujar a Pajero zero que tinha dado para a esposa no dia seguinte ao recebimento do décimo-terceiro.

Ti levou a caixa de ferramentas da mãe, mulher divorciada e sacudida; resolvedora; provedora. Martelos, chaves, parafusos de tamanhos variados e o principal: força de trabalho. Era ele quem sabia de estrutura e construção, por influência da velha, que tinha informações de tudo um tanto. O piá queria fazer reforço de matemática a partir de fevereiro para, mais ligado, tentar nota boa no ENEM e ingressar no curso de engenharia civil da UTFPR, mas não sofria pressão para acertar a boa de primeira. Se não desse no fim do ano que vem, que fosse no próximo ou no próximo do próximo.

Chris vasculhou sete construções na procura de uma quina longa de metal. Era o responsável por garantir os grinds. Circulou tranquilo em sua bicicleta Light cromada, presente e quase herança de um primo mais velho, Lúcio, que se dizia pastor evangélico, ex-pixador e ex-cheirador de cola e thinner. Na oitava obra encontrou uma canaleta que daria para o gasto. Lixou as pontas e boa. Carregou duas garrafas pet de dois litros com água gelada e as colocou em sua mochila Nike preta. Trocou as rodas do carrinho por um jogo Zero que ganhou antecipado de aniversário, dali três semanas. Pendurou a borda entre as costas e a bagagem, por dentro das alças, montou na bikezinha e rua.

E Du chegou por último com duas velas de sete dias, mais um isqueiro e cigarros que tirou de uma senhora no começo da tarde. Meteu a aba reta nas sobrancelhas e: saiu com carteira e o que mais a velha segurava na saída do Banco do Brasil da rápida Centro-Pinheirinho, duas quadras antes do Drive in. Conseguiu R$ 85. Virou à direita na primeira quadra e jogou os documentos no chão, na porta da igreja. Precisava de dinheiro para continuar alargando as orelhas e fazendo tatuagens. Já tinha conseguido pagar duas, feitas na casa de um camarada mais velho, longe dos olhos dos pais: um dragão na parte interna do braço direito e um contorno da palavra diabo em fonte gótica acompanhando a curva de cima da barriga. Morava em uma casa em invasão e circulava em skates montados com contribuições dos amigos. Vinha um shape daqui, às vezes Flip, um jogo de rolamentos dali, às vezes ABEC 5 ou 7, um par de trucks novos dali outro, às vezes Venture.

Tobias assistiu aos cumprimentos da molecada e o começo do trabalho com as bochechas erguidas, num sorriso frouxo e atencioso. Despediu-se do filho e dos outros dizendo para ninguém entrar em confusão, porque queria relaxar e assistir futebol com som 7.1 de seu home theater novo.

O serviço dos adolescentes durou quarenta minutos de risada. Montaram lateral com lateral e colocaram o máximo de pregos que seus braços finos aguentaram bater.

O palquinho ficou firme. Colocaram o trem na rua. Testaram o novo brinquedo com fiftys de front e aprovaram. Aí começaram a tentar manobras mais difíceis, cada qual na sua; em quatro ritmos distintos, capacidades e incapacidades. Chris, o mais focado, acertou um tailslide back e um switch crooked devagar, mas funcional. Treinar em pista fechada estava fazendo bem. Quando os amigos cansaram, perto do fim do segundo garrafão de água, começaram as despedidas. Primeiro foi Ti, correndo, como sempre. Depois Chris, esquisito.

Du sentiu a agitação dos colegas e parou de alongar as pernas. Respirou. Andou até tapar a visão do remanescente Miguel, que estava deitado no meio-fio para soltar as costas antes de ir embora. Perguntou o que o amigo faria mais tarde.

– Hoje vou ver o Jogos Vorazes novo no cinema do Curitiba, tá ligado?

– Aham. Sozinho?

– Ah… meio de festa de aniversário…

– Ah é?

– … do Ti que a mãe dele chamou. Com a primaiada? Ela te falou, né?

– Não.

– Mas vamo, né? Não pode beber lá, mas a gente já chega louco, né? – e riu constrangido.

Du discordou, pediu para o amigo esconder o caixote no terreno ao lado e também quis ir embora. Falou de um vídeo novo do Daewon Song e de outro do Luan de Oliveira, no Youtube, tomou mais um gole de água e deu tchau. Passou num posto de gasolina da João Bettega e comprou duas Brahma latão com sua cara batida de maior de idade. Tomou a primeira sentado na mureta. Tirou o dinheiro do bolso e contou. Ainda tinha setenta e uns quebrados. Olhou para a placa em cima da cabeça e pensou naqueles preços. Tudo caro. Viu um Interbairros V indo para a esquerda e outro para a direita. Levantou, deu meia volta e perguntou para um frentista se dava para encher dois litros de gasolina em alguma garrafa para levar.

Minha Jog tá sem nada.

O frentista duvidou que ele tivesse uma, mas não tinha nada que ver com o assunto. Tomou o último copinho de uma Sprite já quente que os funcionários tinham rachado mais cedo e fez o que o moleque pediu, depois de ouvir tranquilo o som de moedas no bolso do cliente.

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Imagens e texto: Marco Antonio Santos (rs)

 

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Escala de Baumé 0 4880

Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Vida comum parte 1 0 5065

Vida comum parte 1

Véspera de feriado, antes da meia-noite e eu já com meia garrafa de conhaque na mente. Curtia me derreter no gole, de dose, de lata, de garrafa, de todo jeito. No feriado rolou um churrascão que nem lembro se comi, dropei umas caipiras antes de acender o fogo e fiquei mais preocupado com a temperatura das garrafas que da carne. Sábado a ressaca com a mão pesada, tava batendo forte, contra-ataquei com uns latão, encostado nos fundos do posto com a rapeize, só flagrando os doidinho tirando uns racha de Parati, Chevette e Gol Chaleira. Domingo rolou rave na região metropolitana, no meio do mato, não virava ir de bonde, botei uma gasolina na Bizz e meti o pé; duas carteiras de Minister depois já tinha descido whisky com energético, vodka com suco, vários ampola, um doce e umas água colorida que os parceiro botaram, sei lá qual fita, puta gosto de remédio. Bati a nave antes da hora, cheguei em Grayskull sem nem aproveitar a viagem, ensaiava falar e não saia voz, tava tenso, me mordendo, fiquei nervoso: deu bad. Tentei endireitar a caminhada tomando umas águas, mas não rolou, a conta não batia, os dentes rangendo, coração agitado querendo se mudar do peito. Precisava voltar pra minha goma, tomar um banho, talvez dois, sei lá, só precisava vazar, montei na moto e fui. Tava com dois IPVA atrasados, cabreiro de cair numa blitz, e se soprasse um bafômetro explodia a máquina – certeza. Queria chegar logo, entrei no modo Valentino Rossi e corri a milhão, como se fosse fuga. Foi aí que deu ruim no piloto automático, se pá que dormi em cima do jato, lembro só de uns clarão, uns flash. Vi o céu por baixo, deitado no asfalto, sei lá qual fita, tudo nublado, que dia bosta. Me liguei e já tava todo remendado no hospital, numa sala com umas vinte cabeça, todo mundo fudido, uns mais outros menos. Eu? Era cabeça de chave do grupo dos desgraçados: com a lata do frankstein, olho roxo, cara inchada, nariz quebrado, uns ponto na testa. Trinquei uma costela e quebrei outras duas, a clavícula rachou e a mão tava na carne viva. O médico foi desenrolando essa lista aí e eu aceitando na moral, os pensamentos embaçados, cheio de analgésico, todo bagunçado de dor. Aí teve uma mão que ele deu uma pausa, ficou mais bolado e mandou A real: disse que eu sofri um choque cabuloso no quadril, perdi mais de 80% do fígado, que num tinha como dizer o tamanho real do estrago, mais uma fita era certa, nunca mais ia poder beber, se tomar meia lata que seja, posso encomendar o caixão. Acordei umas três vezes crente que tava tendo um pesadelo, foquei umas horas que tava numa brisa errada de doce. Mas não. A vida é uma viagem desgraçada.