Factoides da devastação 0 1032

– Enchente destruiu um bairro inteiro no Sul da cidade.

 

– Furtaram minha bicicleta.

 

– A Terra vai acabar.

 

– A polícia foi chamada por uma família que encontrou maconha na mochila do filho mais novo. Exigiam que os policiais fossem atrás do colega da escola que passou a droga.

 

– Encontraram vida inteligente no espaço.

 

– Minha bike estava presa no bicicletário do meu emprego. Depois de trabalhar o feriado todo, na hora de ir pra casa, descobri que tinham furtado. Filhos da puta. Entre tantas bicicletas, por que a minha? Demorei em acreditar. Lá tem os vigilantes, mas perguntei e os caras nem tinham visto. E as câmeras? A central fica na sala do chefe, mas hoje é feriado e ele não está por ai, só segunda-feira. É o fim do mundo mesmo! Sai puto da cara. Tive que ir embora caminhando.

 

– Três pessoas morreram atropeladas por motoristas embriagados.

 

– Li as estatísticas do geoprocessamento e acho que as viaturas da polícia estão mal posicionadas. Na verdade não li porra nenhuma, vi isso em Tropa de Elite. Peguei uma pilha de papel com dados sobre a violência na cidade e limpei a caixa de areia do meu gato. Joguei água da máquina de lavar roupas em cima e coloquei no Sol pra secar. O resultado foi minha obra prima de nome composto: “Crimes de merda – lavando a cidade com água sanitária”. O curador da galeria que a colocou em exposição resolveu mudar o título para “Dilúvio pós-moderno”.

 

– Uma criança foi levada ao hospital com panela presa na cabeça.

 

– Analbeth de Jesus foi ao mercado comprar cigarros e não voltou mais. Familiares estão desesperados.

 

– Os frentistas do posto Leão, que fica perto da Praça do Comunista, costumavam beber no bar do Vermelho após o expediente. Ontem, durante um suposto assalto, um deles teria tentado bancar o herói. O ladrão deu tiro para todos os lados, matou os frentistas e o dono do bar. Baleado, Vermelho ainda tentou se esconder atrás do balcão, mas o marginal foi atrás dele pra finalizar. Diz uma testemunha que o bandido vestia camiseta da seleção canarinho.

 

– Elon Musk conseguiu pousar um foguete em segurança esses dias. Por mais simples que isso possa soar, representa um grande passo para a viagem espacial. Elon Musk tem cinco filhos, constrói carros elétricos, inventou o PayPal, inventou o Hyperloop e já disse que quer bombardear Marte. Esse cara é um robô?

 

– Preciso deixar o celular de lado. Tenho desperdiçado muito tempo lendo factoides no Twitter e no Reddit. Preciso parar de copiar as frequências de rádio da polícia. Preciso passear mais de bicicleta ouvindo aquele som o Hyldon: vamos passear, êhêh, vamos passear, êhêh….

 

– No dia que roubaram minha bike, em vez de ir para casa, fui ao Distrito Policial ali na Rua André de Barros registrar queixa de furto. Mas o policial disse que era feriado e estavam sem “sistema”, além disso, era melhor eu vazar, os presos estavam fazendo bate-grade. A cadeia ia virar. Se eu ficasse ali, ele não ia poder garantir a minha segurança.

 

– Encontrei minha bike. Sai da delegacia e desci a André de Barros com medo de ser assaltado e quando virei no Guadalupe, olhei o relógio, quase meia-noite. Caminhei alguns metros e perto de uma das estações-tubo havia um grupo de mendigos e um deles estava com a minha bike. Tive de agir sozinho. Corri na direção dele cego pelo ódio. Empurrei o mendigo com força e fui tirando a bicicleta. Dava socos nas costas dele e gritava o tempo todo: essa bike é minha seu filho da puta, ladrão do caralho, eu te mato, eu te mato. Os demais tentaram vir em auxílio do amigo, mas eu já estava longe pedalando sem olhar para trás. Comprei um cadeado novo, um desses de verdade.

 

– Os moradores do bairro no Sul da cidade, destruído pela enchente, tentam se reerguer. Foram realocados em um bairro novo, perto do barracão logístico da empresa de transporte ferroviário. Os trens são infernais. Ninguém mais consegue dormir à noite.

 

– Em dois dias tudo isso vai acabar. Uma estrela anciã que fica perto do centro da galáxia vai explodir. A gênese do buraco negro que engolirá todos nós, como uma inundação cósmica gigantesca.

 

 

Texto: Jadson André

Imagem: Nebulosa Abell 33, fotografada por um telescópio no Chile.

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Escala de Baumé 0 4830

Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Vida comum parte 1 0 5018

Vida comum parte 1

Véspera de feriado, antes da meia-noite e eu já com meia garrafa de conhaque na mente. Curtia me derreter no gole, de dose, de lata, de garrafa, de todo jeito. No feriado rolou um churrascão que nem lembro se comi, dropei umas caipiras antes de acender o fogo e fiquei mais preocupado com a temperatura das garrafas que da carne. Sábado a ressaca com a mão pesada, tava batendo forte, contra-ataquei com uns latão, encostado nos fundos do posto com a rapeize, só flagrando os doidinho tirando uns racha de Parati, Chevette e Gol Chaleira. Domingo rolou rave na região metropolitana, no meio do mato, não virava ir de bonde, botei uma gasolina na Bizz e meti o pé; duas carteiras de Minister depois já tinha descido whisky com energético, vodka com suco, vários ampola, um doce e umas água colorida que os parceiro botaram, sei lá qual fita, puta gosto de remédio. Bati a nave antes da hora, cheguei em Grayskull sem nem aproveitar a viagem, ensaiava falar e não saia voz, tava tenso, me mordendo, fiquei nervoso: deu bad. Tentei endireitar a caminhada tomando umas águas, mas não rolou, a conta não batia, os dentes rangendo, coração agitado querendo se mudar do peito. Precisava voltar pra minha goma, tomar um banho, talvez dois, sei lá, só precisava vazar, montei na moto e fui. Tava com dois IPVA atrasados, cabreiro de cair numa blitz, e se soprasse um bafômetro explodia a máquina – certeza. Queria chegar logo, entrei no modo Valentino Rossi e corri a milhão, como se fosse fuga. Foi aí que deu ruim no piloto automático, se pá que dormi em cima do jato, lembro só de uns clarão, uns flash. Vi o céu por baixo, deitado no asfalto, sei lá qual fita, tudo nublado, que dia bosta. Me liguei e já tava todo remendado no hospital, numa sala com umas vinte cabeça, todo mundo fudido, uns mais outros menos. Eu? Era cabeça de chave do grupo dos desgraçados: com a lata do frankstein, olho roxo, cara inchada, nariz quebrado, uns ponto na testa. Trinquei uma costela e quebrei outras duas, a clavícula rachou e a mão tava na carne viva. O médico foi desenrolando essa lista aí e eu aceitando na moral, os pensamentos embaçados, cheio de analgésico, todo bagunçado de dor. Aí teve uma mão que ele deu uma pausa, ficou mais bolado e mandou A real: disse que eu sofri um choque cabuloso no quadril, perdi mais de 80% do fígado, que num tinha como dizer o tamanho real do estrago, mais uma fita era certa, nunca mais ia poder beber, se tomar meia lata que seja, posso encomendar o caixão. Acordei umas três vezes crente que tava tendo um pesadelo, foquei umas horas que tava numa brisa errada de doce. Mas não. A vida é uma viagem desgraçada.