
Depois do almoço ainda sinto aquela vontadesinha de fumar um longo cigarro, modelo slim, que ainda vendem em umas poucas bancas de jornal no Centro. Parei de fumar há cinco anos, parei com outros tóxicos também, mesmo assim, todos os dias depois do almoço ainda compro três cigarros soltos. Pego um jornal popular local, um periódico de São Paulo, com as notícias nacionais e, às vezes, um livrinho de palavras cruzadas novo, mas sempre os de nível médio, porque gosto de pequenos triunfos sem muito trabalho. Sento na Praça Santos Dumont, acendo um slim, solto a primeira baforada. Adquiri esse hábito com meu amigo Mac. Alguns podem chamá-lo de tolo, mas ele sempre diz: I’m only trying to calm down, just trying to keep it cool. Deve ser apenas publicidade manjada, dessas que eu crio todo dia para os clientes, mas caio nelas mesmo assim.
Depois de soltar a segunda baforada eu abro o jornal local, dou uma passada de olho nas notícias policiais, no esporte, que eu não gosto, mas leio para não ficar sem assunto com a rapaziada da agência. Então dou uma olhada nas colunas de opinião e falo mal em voz alta, xingo os filhos da puta que escreveram, eu os leio só para criticar mesmo, são uns idiotas e por isso gosto de lê-los, para saber como não pensar, é um exercício diário pra criar anticorpos. Por fim vou pros classificados conferir se tem alguma putinha nova na cidade. Confiro se as casas de swing continuam em pleno funcionamento. Às vezes eu pego uma putinha e vou a esses lugares que são muito bem frequentados. Lá gasto minha grana. É bom fazer as pessoas felizes sem pensar no amanhã. Sinto que nesses instantes nos tornamos parecidos, quase sou um deles. É um teatro do absurdo que Beckett não poderia ter imaginado. Após meus momentos de planejamento sexual para o fim de semana, abro o jornal nacional e vou direto à última página do caderno de cultura pra olhar as tirinhas. Depois leio as colunas de opinião e por último as de política, cotidiano, economia. Sou um bom leitor eu diria, um leitor voraz.
Dobro os jornais, puxo o lápis curtinho que deixo sempre no bolso do paletó e preencho algumas páginas do livro de palavras cruzadas. A Praça Santos Dumont é um microuniverso perdido entre uma sinagoga velha e a Secretaria de Cultura, com um bar espanhol na esquina de cima e a banquinha de jornal tradicional. Do lado de baixo há outro cenário particular: a Rua Cruz Machado. Esse é meu lar nas noites frias. Cruzei-a do Edifício Itália à Catedral centenas de vezes em uma só noite atrás das putinhas chinesas, das loiras falsificadas e parei sim (como todos os homens mal criados dessa cidade já pararam) na encruzilhada da fonte, na esquina da Rua Cruz Machado e Alameda Cabral e lá, atrás do semáforo, olhei o Motel Zumbi, a boate London Underground e a escadaria de pedra. Por diversas vezes olhei aquele cenário e me senti na escuridão, desarmado contra um desejo animal implacável. Bebi em copo de plástico, perambulei a pé até as nove da manhã e acenei para um ou outro conhecido que passou de carro indo levar o filho ao grupo de escoteiro ou pra bater um futebolzinho no domingo de manhã. Sabe aquelas meninas por quem você passa de carro à noite e sobe o vidro para não entrar em tentação? Então, comi todas elas sim, por que não? Vim ao mundo para comer. Os garotos são bocas insaciáveis. Nas noites frias eu apenas entro e saio sem explicações nem ressentimento.
A Cruz Machado é sim aquele universo romântico e decadente que Terence Keller traduziu em filme, em 2009. Eu assisti a esse filme há uns anos. Era quatro da manhã e estava completamente louco na grande sala de descanso de uma festa de música eletrônica. Na sala branca havia gigantescos sofás neutros e um retroprojetor passando curtas-metragens na parede. Algumas pessoas assistiam, outras apenas olhavam porque não conseguiam fechar os olhos e uma meia dúzia dormia por uns instantes. Eu ia muito nessas raves depois que a minha mulher me abandonou de vez, ainda nos tempos de WS, em São Paulo. Foram seis anos de torração, drogas sintéticas, cortes de cabelo excêntricos, meu apartamento virou algo que eu não entendia mais, os estranhos que apareceram lá aos montes, nas festinhas “privadas”, levaram tanta coisa embora que ao fim desse período já não parecia uma casa, mas uma instalação de arte surreal/minimalista de museu contemporâneo, enfim, como você pode imaginar, era triste a cena. Então voltei pra Curitiba, fazer o que, já estava desempregado há um bom tempo. Havia vendido tudo e gastado tudo. Fritasso e com alguns neurônios a menos, voltei pro São Francisco, pro apartamento no décimo quinto andar onde meu pai cresceu e onde eu morei quase a vida inteira também. O prédio é velho, as instalações de água e energia vivem dando problema, mas não preciso pagar aluguel, moro sozinho e a taxa de condomínio é barata. Vou a pé pro Centro, a agência é legal, pequena, mas fica no vigésimo andar e da minha mesa da pra ver a região Leste da cidade com a Serra do Mar ao fundo.
A loucuragem continua firme, mas eu só bebo mesmo. Cigarro? Só esses três depois do meio-dia. Já disse que parei de fumar. No mais, tô clean, não quero voltar praquela clínica na chácara e suportar a tolerância zero. Fico na piração, mas sem precisar descer demais, é tipo aquela redução de danos que os viciados em heroína ou em outros opióides fazem usando metadona, guardadas as devidas proporções é claro. Crack eu nunca mandei, não por falta de oportunidade, mas eu nunca fui afim mesmo, até bateu a curiosidade depois que um camarada me descreveu a onda, mas não sei não, acho muito baixo nível, não que eu me importe com o nível, afinal, o baixo Centro é o baixo Centro.
Aqui na Santos Dumont eu vejo os piores exemplos, os nóias entram por uma abertura na grade de ferro, que leva a uma área subterrânea atrás da sinagoga e lá embaixo puxam a fumaça da latinha ou do cachimbo. Saem espiadassos, falando sozinhos, olhando pra luz com dificuldade, elétricos, mas em câmera lenta ao mesmo tempo. Já vi cada cena nesse tempinho que fico ali sentado depois do almoço. Já vi nóia metendo lá dentro, achei que depois de um tempo eles paravam de meter. Tem uns que sentam no banco em frente ao meu e ficam se espreguiçando, olhando os carros passando, depois vão pro sinal, perto do ponto de táxi e pedem esmolas. Mas é claro que não são só eles que aparecem ali na praça. Há pombos nojentos, velhinhos que assim como eu sentam nos bancos pra dar uma olhada no jornal, o pessoal da construção civil que às vezes deita na grama suja pra dormir um pouco, os casaizinhos que trabalham nos escritórios do Centro e param ali na praça pra fumar um baseadinho e dar uns beijos antes de voltar pro estresse da tarde. Tem muita gente estranha, mas muita gente bonita também, eu gosto de apreciar a beleza das pessoas. Fico observando os tamanhos diferentes das bundas, dos ombros, seios, coxas, maçãs do rosto, cabelos. Encanto-me e apaixono-me sem nunca trocar uma palavra com elas. Apenas observo.
A essa altura, depois de passear com os olhos por tudo isso, eu jogo a guimba do terceiro slim no chão, piso nela com a parte da frente da sola e pressiono enquanto balanço o calcanhar três vezes, ajeito o paletó, acerto os óculos no alto do nariz e entrego os jornais para um catador de papel parado ao lado do carrinho na entrada da sinagoga fechada. Guardo as palavras cruzadas no bolso, junto ao lápis e volto para o turno da tarde em frente ao computador e ao lado do telefone. Acho que de todas as minhas vontades destrutivas, de todos os meus desejos sujos, dar essas tragadas depois do almoço seja a coisa mais difícil de largar.
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Texto: Jadson André
Imagem: Samuel Briare