Depois do meio-dia (ode to the slim cigarette) 0 979

Depois do almoço ainda sinto aquela vontadesinha de fumar um longo cigarro, modelo slim, que ainda vendem em umas poucas bancas de jornal no Centro. Parei de fumar há cinco anos, parei com outros tóxicos também, mesmo assim, todos os dias depois do almoço ainda compro três cigarros soltos. Pego um jornal popular local, um periódico de São Paulo, com as notícias nacionais e, às vezes, um livrinho de palavras cruzadas novo, mas sempre os de nível médio, porque gosto de pequenos triunfos sem muito trabalho. Sento na Praça Santos Dumont, acendo um slim, solto a primeira baforada. Adquiri esse hábito com meu amigo Mac. Alguns podem chamá-lo de tolo, mas ele sempre diz: I’m only trying to calm down, just trying to keep it cool. Deve ser apenas publicidade manjada, dessas que eu crio todo dia para os clientes, mas caio nelas mesmo assim.

Depois de soltar a segunda baforada eu abro o jornal local, dou uma passada de olho nas notícias policiais, no esporte, que eu não gosto, mas leio para não ficar sem assunto com a rapaziada da agência. Então dou uma olhada nas colunas de opinião e falo mal em voz alta, xingo os filhos da puta que escreveram, eu os leio só para criticar mesmo, são uns idiotas e por isso gosto de lê-los, para saber como não pensar, é um exercício diário pra criar anticorpos. Por fim vou pros classificados conferir se tem alguma putinha nova na cidade. Confiro se as casas de swing continuam em pleno funcionamento. Às vezes eu pego uma putinha e vou a esses lugares que são muito bem frequentados. Lá gasto minha grana. É bom fazer as pessoas felizes sem pensar no amanhã. Sinto que nesses instantes nos tornamos parecidos, quase sou um deles. É um teatro do absurdo que Beckett não poderia ter imaginado. Após meus momentos de planejamento sexual para o fim de semana, abro o jornal nacional e vou direto à última página do caderno de cultura pra olhar as tirinhas. Depois leio as colunas de opinião e por último as de política, cotidiano, economia. Sou um bom leitor eu diria, um leitor voraz.

Dobro os jornais, puxo o lápis curtinho que deixo sempre no bolso do paletó e preencho algumas páginas do livro de palavras cruzadas. A Praça Santos Dumont é um microuniverso perdido entre uma sinagoga velha e a Secretaria de Cultura, com um bar espanhol na esquina de cima e a banquinha de jornal tradicional. Do lado de baixo há outro cenário particular: a Rua Cruz Machado. Esse é meu lar nas noites frias. Cruzei-a do Edifício Itália à Catedral centenas de vezes em uma só noite atrás das putinhas chinesas, das loiras falsificadas e parei sim (como todos os homens mal criados dessa cidade já pararam) na encruzilhada da fonte, na esquina da Rua Cruz Machado e Alameda Cabral e lá, atrás do semáforo, olhei o Motel Zumbi, a boate London Underground e a escadaria de pedra. Por diversas vezes olhei aquele cenário e me senti na escuridão, desarmado contra um desejo animal implacável. Bebi em copo de plástico, perambulei a pé até as nove da manhã e acenei para um ou outro conhecido que passou de carro indo levar o filho ao grupo de escoteiro ou pra bater um futebolzinho no domingo de manhã. Sabe aquelas meninas por quem você passa de carro à noite e sobe o vidro para não entrar em tentação? Então, comi todas elas sim, por que não? Vim ao mundo para comer. Os garotos são bocas insaciáveis. Nas noites frias eu apenas entro e saio sem explicações nem ressentimento.

A Cruz Machado é sim aquele universo romântico e decadente que Terence Keller traduziu em filme, em 2009. Eu assisti a esse filme há uns anos. Era quatro da manhã e estava completamente louco na grande sala de descanso de uma festa de música eletrônica. Na sala branca havia gigantescos sofás neutros e um retroprojetor passando curtas-metragens na parede. Algumas pessoas assistiam, outras apenas olhavam porque não conseguiam fechar os olhos e uma meia dúzia dormia por uns instantes. Eu ia muito nessas raves depois que a minha mulher me abandonou de vez, ainda nos tempos de WS, em São Paulo. Foram seis anos de torração, drogas sintéticas, cortes de cabelo excêntricos, meu apartamento virou algo que eu não entendia mais, os estranhos que apareceram lá aos montes, nas festinhas “privadas”, levaram tanta coisa embora que ao fim desse período já não parecia uma casa, mas uma instalação de arte surreal/minimalista de museu contemporâneo, enfim, como você pode imaginar, era triste a cena. Então voltei pra Curitiba, fazer o que, já estava desempregado há um bom tempo. Havia vendido tudo e gastado tudo. Fritasso e com alguns neurônios a menos, voltei pro São Francisco, pro apartamento no décimo quinto andar onde meu pai cresceu e onde eu morei quase a vida inteira também. O prédio é velho, as instalações de água e energia vivem dando problema, mas não preciso pagar aluguel, moro sozinho e a taxa de condomínio é barata. Vou a pé pro Centro, a agência é legal, pequena, mas fica no vigésimo andar e da minha mesa da pra ver a região Leste da cidade com a Serra do Mar ao fundo.

A loucuragem continua firme, mas eu só bebo mesmo. Cigarro? Só esses três depois do meio-dia. Já disse que parei de fumar. No mais, tô clean, não quero voltar praquela clínica na chácara e suportar a tolerância zero. Fico na piração, mas sem precisar descer demais, é tipo aquela redução de danos que os viciados em heroína ou em outros opióides fazem usando metadona, guardadas as devidas proporções é claro. Crack eu nunca mandei, não por falta de oportunidade, mas eu nunca fui afim mesmo, até bateu a curiosidade depois que um camarada me descreveu a onda, mas não sei não, acho muito baixo nível, não que eu me importe com o nível, afinal, o baixo Centro é o baixo Centro.

Aqui na Santos Dumont eu vejo os piores exemplos, os nóias entram por uma abertura na grade de ferro, que leva a uma área subterrânea atrás da sinagoga e lá embaixo puxam a fumaça da latinha ou do cachimbo. Saem espiadassos, falando sozinhos, olhando pra luz com dificuldade, elétricos, mas em câmera lenta ao mesmo tempo. Já vi cada cena nesse tempinho que fico ali sentado depois do almoço. Já vi nóia metendo lá dentro, achei que depois de um tempo eles paravam de meter. Tem uns que sentam no banco em frente ao meu e ficam se espreguiçando, olhando os carros passando, depois vão pro sinal, perto do ponto de táxi e pedem esmolas. Mas é claro que não são só eles que aparecem ali na praça. Há pombos nojentos, velhinhos que assim como eu sentam nos bancos pra dar uma olhada no jornal, o pessoal da construção civil que às vezes deita na grama suja pra dormir um pouco, os casaizinhos que trabalham nos escritórios do Centro e param ali na praça pra fumar um baseadinho e dar uns beijos antes de voltar pro estresse da tarde. Tem muita gente estranha, mas muita gente bonita também, eu gosto de apreciar a beleza das pessoas. Fico observando os tamanhos diferentes das bundas, dos ombros, seios, coxas, maçãs do rosto, cabelos. Encanto-me e apaixono-me sem nunca trocar uma palavra com elas. Apenas observo.

A essa altura, depois de passear com os olhos por tudo isso, eu jogo a guimba do terceiro slim no chão, piso nela com a parte da frente da sola e pressiono enquanto balanço o calcanhar três vezes, ajeito o paletó, acerto os óculos no alto do nariz e entrego os jornais para um catador de papel parado ao lado do carrinho na entrada da sinagoga fechada. Guardo as palavras cruzadas no bolso, junto ao lápis e volto para o turno da tarde em frente ao computador e ao lado do telefone. Acho que de todas as minhas vontades destrutivas, de todos os meus desejos sujos, dar essas tragadas depois do almoço seja a coisa mais difícil de largar.

 

 

Texto: Jadson André

Imagem: Samuel Briare

 

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Escala de Baumé 0 4830

Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Vida comum parte 1 0 5017

Vida comum parte 1

Véspera de feriado, antes da meia-noite e eu já com meia garrafa de conhaque na mente. Curtia me derreter no gole, de dose, de lata, de garrafa, de todo jeito. No feriado rolou um churrascão que nem lembro se comi, dropei umas caipiras antes de acender o fogo e fiquei mais preocupado com a temperatura das garrafas que da carne. Sábado a ressaca com a mão pesada, tava batendo forte, contra-ataquei com uns latão, encostado nos fundos do posto com a rapeize, só flagrando os doidinho tirando uns racha de Parati, Chevette e Gol Chaleira. Domingo rolou rave na região metropolitana, no meio do mato, não virava ir de bonde, botei uma gasolina na Bizz e meti o pé; duas carteiras de Minister depois já tinha descido whisky com energético, vodka com suco, vários ampola, um doce e umas água colorida que os parceiro botaram, sei lá qual fita, puta gosto de remédio. Bati a nave antes da hora, cheguei em Grayskull sem nem aproveitar a viagem, ensaiava falar e não saia voz, tava tenso, me mordendo, fiquei nervoso: deu bad. Tentei endireitar a caminhada tomando umas águas, mas não rolou, a conta não batia, os dentes rangendo, coração agitado querendo se mudar do peito. Precisava voltar pra minha goma, tomar um banho, talvez dois, sei lá, só precisava vazar, montei na moto e fui. Tava com dois IPVA atrasados, cabreiro de cair numa blitz, e se soprasse um bafômetro explodia a máquina – certeza. Queria chegar logo, entrei no modo Valentino Rossi e corri a milhão, como se fosse fuga. Foi aí que deu ruim no piloto automático, se pá que dormi em cima do jato, lembro só de uns clarão, uns flash. Vi o céu por baixo, deitado no asfalto, sei lá qual fita, tudo nublado, que dia bosta. Me liguei e já tava todo remendado no hospital, numa sala com umas vinte cabeça, todo mundo fudido, uns mais outros menos. Eu? Era cabeça de chave do grupo dos desgraçados: com a lata do frankstein, olho roxo, cara inchada, nariz quebrado, uns ponto na testa. Trinquei uma costela e quebrei outras duas, a clavícula rachou e a mão tava na carne viva. O médico foi desenrolando essa lista aí e eu aceitando na moral, os pensamentos embaçados, cheio de analgésico, todo bagunçado de dor. Aí teve uma mão que ele deu uma pausa, ficou mais bolado e mandou A real: disse que eu sofri um choque cabuloso no quadril, perdi mais de 80% do fígado, que num tinha como dizer o tamanho real do estrago, mais uma fita era certa, nunca mais ia poder beber, se tomar meia lata que seja, posso encomendar o caixão. Acordei umas três vezes crente que tava tendo um pesadelo, foquei umas horas que tava numa brisa errada de doce. Mas não. A vida é uma viagem desgraçada.