
Essa história vai valer quase nada daqui a cinco anos. Ou até a próxima atualização do Google maps. Talvez dure três anos, mas não descarto totalmente a ideia de que amanhã mesmo, essa história já não faça o menor sentido. Digamos que esse homem, de casacão preto e olheiras profundas, caminhando avulso pela Comendador Fontana, cruzamento com a Marechal Hermes, por estar falando ao celular, ele esbarre sem querer…
[-… Amanhã mesmo eu passo aí.
– Você tem comido comida de verdade. Arroz, feijão?
– Não precisa se preocupar.
– Recebeu alguma noticia?
– Não precisa se preocupar, mãe.
– Eu tenho saudades dos meninos.
– Também tenho, mas fazer o que?
– Você ta solitário demais. Precisa sair.
– To saindo agora mesmo do consultório do tal doutor Freire que a senhora falou. E…]
… Sem querer, ele esbarre na moça que estava virando a esquina. Ela tem dois livros no antebraço e uma bolsa de alça pendurada no ombro esquerdo. Está fazendo um dia bonito, como você pode ver; as nuvens têm um aspecto de vapor e há passarinhos nos fios dos postes de luz; uma mulher parada no ponto de ônibus, estendendo o dedão para o motorista; um PM de farda e tudo, auxiliando outra mulher; essas coisas. O homem então interrompe rapidamente a conversa com a mãe, e pede desculpas para a moça. Ele é mesmo um distraído, me desculpa, eu devia prestar mais atenção por onde ando… deixa cá que eu ajudo você a pegar os livros do chão. Mas vejam só, os dois livros são exatamente O jogo da amarelinha e Cem anos de solidão. Os dois livros preferidos dele.
O homem demora os olhos nas capas e, sentindo-se feliz, os entrega para a moça. Ela diz: Muito obrigada. Ele diz: Bom gosto para leitura. E ela: São os meus livros preferidos.
Nesse momento, o homem olha para ela com desconfiança. Como se não bastasse ter os olhos puxados e o cabelo cor de vermelho, ela ainda por cima lia os mesmo livros que ele.
– São os meus preferidos também.
Em outro ponto da cidade, vemos a mãe do homem que esbarrou na moça. Não é possível dizer uma idade exata, mas ela provavelmente deve estar na casa dos oitenta, oitenta e cinco anos. Ela tem um telefone na orelha e está especificando para a atendente o tipo de mulher que o seu filho gosta. “Ruiva. Isso. Com os olhos puxados. Não sei por que. Mas a ex-mulher era assim.”
A atendente diz um valor. E está incluída uma moça ruiva com os olhos levemente puxados. A atendente ainda explica: Nossa atriz vai esbarrar nele e iniciar algum tipo de conversa – aliás, qual o livro preferido dele? – está incluída a troca de telefones. A maioria interrompe por aqui, sabe? Só para aumentar a auto-estima do cliente. Um olho no olho, um sorriso, a possível troca de telefone, isso já basta. Mas se a senhora quiser com o sexo incluído, daí fica mais caro.
Resumindo: no dia seguinte, o homem não foi visitar a sua mãe, pois estava ocupado demais transando com a garota ruiva. Na outra manhã, do outro dia seguinte, o homem se suicidou. Pela falta de criatividade do autor.
Texto: Luiz Felipe
Ilustração: Caroline Rehbein