
Não demorou para que Mariel virasse Marigol entre os torcedores do Tricolor da capital. Quando ele apareceu, contratado como destaque em algum clube pequeno do campeonato estadual gaúcho, o time vinha jogando bem e criava muitas oportunidades no Brasileirão, mas a bola não entrava de jeito nenhum. Marigol tratou de suprir a necessidade: fez logo três gols nos dois jogos em que entrou no segundo tempo, dando a entender que a sina acabara e que o torcedor tinha um novo artilheiro para chamar de seu.
Nunca foi craque – na verdade, tinha até alguma dificuldade nos fundamentos mais básicos do futebol, como domínio de bolas e passes curtos – mas conquistou a Demônios das Três Cores, torcida organizada da agremiação, dando tudo de si em todas as partidas e estando sempre no lugar certo, como se Deus sussurrasse em seu ouvido aonde deveria ficar para empurrar a bola pra dentro das traves, com a parte do corpo que fosse.
Logo ganhou a camisa 9 e a boa fase se consolidou. O time voava e mais três gols decisivos de Marigol em quatro partidas transformaram o Tricolor, que havia recém subido à primeira divisão, em candidato cada vez mais forte a ganhar uma vaga para a Taça Libertadores do próximo ano. Cada partida era como uma nova página na bonita história de amor construída entre atleta e clube. Nos poucos combates em que a bola não entrava, disposição não faltava, e qualquer tentativa de salvar uma saída de bola pela linha lateral era comemorada pela galera.
Tudo vinha bem até o meio do ano. O campeonato nacional foi paralisado por um mês para a realização da Copa das Confederações, que trouxe, com ela, a abertura da janela de transferências e o inevitável desmanche do elenco. Marquinhos, o “Canhota de Ouro” dono da 10, foi negociado com o futebol chinês, e o lateral-direito Tiago Matos – “Diabo Matos”, para os adeptos – foi seduzido por um investidor e partiu para a série B da França.
Com o time desfigurado, a esperança da Demônios das Três Cores tinha nome e apelido: Mariel, o popular Marigol. Mas depois de três jogos após a pausa, as coisas já mudaram bastante de figura. O centroavante ainda metia seus golzinhos, mas recebia menos assistências e a regularidade foi diminuindo. Marcava um tento aqui e outro ali, mas a queda na confiança o levou a perder gols fáceis com uma frequência cada vez maior. O tricolor passou a cair vertiginosamente na tabela, e não tardou para que o sentimento da geral atravessasse a famigerada tênue linha e se transformasse em ódio – os mais maldosos passaram a chamá-lo de MariSemGol.
Numa jornada especialmente triste, na penúltima rodada do campeonato, Marigol conseguiu a façanha de arruinar três excelentes jogadas de ataque no mesmo domingo. A primeira foi um cruzamento açucarado: se ficasse parado, a bola bateria na testa e entraria, mas Marigol tentou um movimento ousado e foi como trocasse a cabeça por um travesseiro fofíssimo, que apenas amorteceu a bola para o goleiro. Na segunda, o 9 recebeu dentro da área, livre de marcação, mas apelou para a ignorância e isolou a bola no terceiro anel do estádio. Já a terceira e mais emblemática foi num contra-ataque em que Mariel ganhou do zagueiro adversário, em um misto de força e velocidade, e saiu cara-a-cara com o goleiro. Ao invés de finalizar fácil, rasteiro e na saída do atleta de luvas, porém, tentou calar os críticos e encobrir o arqueiro com uma cavadinha. Dada a falta do talento, porém, pegou de forma estranhíssima na pelota, que saiu mais fraca do que o planejado e completamente sem direção. A bola fez uma curva bizarra, triscou a trave direita e morreu ainda antes das placas de publicidade na linha de fundo.
O estádio veio abaixo. Nunca se ouviu, naquela região, uma vaia tão sonora – moradores de mais de um bairro de distância relataram uma vibração considerável no chão. No próximo lance, sob o burburinho pesado das arquibancadas, Mariel tropeçou com a bola dominada e ouviu gargalhadas intensas da própria torcida. Ainda no chão, tomado pela ira, desferiu uma bicuda no tornozelo do adversário que lhe tomou a redonda e foi punido com o cartão vermelho. A massa vociferava e Marigol perdeu a cabeça – se levantou do relvado, foi em direção ao setor onde ficava a torcida organizada e baixou o calção, mostrando a todos que infelizmente não utilizava cuecas durante a prática desportiva.
A maioria dos colegas estava ao lado de Marigol, mas o consenso era de que não havia mais clima para o atleta no clube. Logo após o apito final, ainda no vestiário, Dr. Reginaldo, presidente do tricolor à época, foi ter com Mariel. Era aquilo: não tinha mais jeito, rapaz. Aquela fora a gota d’água, e ele precisaria vir rapidamente a público avisar que o jogador não fazia mais parte dos planos da diretoria, ou passaria por frouxo perante a opinião pública. O ex-artilheiro já imaginava e, no fim das contas, sentia mais raiva dos torcedores e injustiça do que arrependimento pelas atitudes. Tinha apenas um último pedido: fazer apenas mais um último treino no gramado daquele palco de algumas glórias e tantas tristezas.
Dr. Reginaldo acatou sem pestanejar, pois guardava ainda bastante simpatia pelo garoto. Na terça-feira seguinte, portanto, Marigol se apresentou como de costume, vestiu o fardamento de treino e foi em direção ao campo. O clima era péssimo e os companheiros o receberam com um silêncio tão desconfortável quanto honesto. Ele quebrou o gelo com alguma piada sobre o fato de que agora estariam livres do futebol dele, todos riram tristemente e se puseram a trabalhar. Errou passes, errou finalizações mas contagiou a todos os colegas com uma alegria que já denotava nostalgia.
Após o treinamento, Mariel se despediu do pessoal e pediu alguns momentos sozinho ao lado das traves onde perdera seus três últimos e fatídicos gols com a camisa tricolor. Passou meia hora – cravada – falando sozinho, sentando, levantando, apontando para os quatro cantos da meta e para o local da arquibancada reservado à Demônios. Conta a lenda que, no momento da despedida derradeira, agradeceu Dr. Reginaldo pela oportunidade e sugeriu, em tom entre piada e profecia, que o clube deveria aposentar para sempre a camisa 9 que vestira naquele campeonato inesquecível.
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Fala-se muito sobre objetos enterrados e más energias. Os mais céticos atribuem o azar à pressão que a posição carrega nas costas após essa passagem meteórica. Ninguém sabe ao certo que tipo de artimanha Marigol fez por lá, mas já são três anos e uns poucos meses que nenhum atleta trajado com a 9 tricolor consegue converter um mísero golzinho naquele lado do campo. Nem de pênalti.
texto de Rômulo Candal
ilustração de Nina Zambiassi