
Estou vendendo a TV, ele disse. A vida adulta tem dessas, a gente precisa fazer alguns sacrifícios. Nem assisto muito, ele dizia, mas eu assisto, ela respondia. Discutiram, mas a TV era dele, precisava de grana e ela nem mesmo morava no apartamento, apesar de deitar várias horas da semana por ali. Quando a gente morar junto você pode decidir, ele dizia, até lá eu decido. O climão ficou por umas semanas, mas se acertaram, menos Netflix mais sexo. Daí um dia ele disse vou vender o sofá. O que?, ela não acreditava. Pois é, tô precisando de uma grana, tá foda, nem tem mais televisão, pra que ter sofá? Ela não quis nem discutir, a casa era dele, ele fazia o que quisesse. Mas tá precisando de grana pra quê? Ah pra pagar o cartão de crédito. Entendi. Noutro dia ele aparecia com umas sacolas de compras e ela já sabia: discos. Olha que massa amor, achei esses aqui na feirinha, barateza. Ela gostava, os discos eram uma das partes dele pela qual ela havia se apaixonado. Quanto foi? Ah, alguns noventa outros cento e vinte, mas olha, coisa linda. Que massa. Dali umas semanas ela chega no apê e não vê mesa nem cadeiras. O que aconteceu? Ah, vendi, amor. A gente se apega às coisas sabe, não tem porquê. Mas vai comprar outra? Vou assim que eu tiver grana. Ela quieta, após a notícia fumavam um e ficava tudo bem. Dias depois o rapaz chega com um Who´s Next, bem cuidadinho, uma relíquia. Que massa, amor, pra ir aquecendo pro show que a gente vai né. É… mas sabe, amor, na verdade eu vendi o ingresso. O quê? Como assim? Ah, tava precisando de grana, sabe, e o show tava meio caro. Mas pera aí, você tá me dizendo que vendeu o ingresso do show do Who e usou o dinheiro pra comprar um vinil do Who? Ai, cala a boca, meu, não tem nada a ver, não é a mesma grana, uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa.
Ela compreendia que se tratava de uma séria adicção, mas não podia falar isso para ele, conhecia o rapaz e já previa sua reação. Não abre a boca pra falar dos meus discos, ele diria, você gasta com um monte de bosta, sapato, almoço gourmet, vinho gringo toda semana e os caralho, deixa meus discos em paz. Ele provavelmente tinha essa resposta na ponta da língua, ela pensava, pra quando precisasse usar. Mas nunca precisou, não com ela porque ela não era boba. Noutro dia o rapaz anuncia: babe, não fique brava comigo, vou ter que vender a geladeira. O que? Como você vai viver sem geladeira? Ah, sei lá, eu me viro, antigamente as pessoas viviam sem geladeira, sabe. Ela indignada, mas podia ser pior, né, quanta gente aí vendendo os móveis pra comprar pó, pedra. A casa estava vazia mas ainda tinha amor, tinha música. Quando ele voltava dos longos garimpos nos sebos, os dois compartilhavam o ritual de tirar o vinil da capa e colocá-lo na vitrola. O chiado preliminar a sussurrar-lhes sacanagens no ouvido antes que todo o som tomasse conta do ambiente. Depois, uma pausa para trocar a posição, pousando a agulha no lado B como se entrasse direto na veia. Assim como os boletos atrasados, a coleção aumentava a cada mês: já eram mais de cem LP´s em caixotes espalhados pelos cantos agora vazios. Quando o rapaz tentou vender a cama, no entanto, ela teve que tomar uma atitude: comprou ela mesma. Pronto, agora a cama é minha, pra você não vender, vai ficar aqui. Quem ama entende, quem entende cuida. Podiam viver de luz, amor e discos. Aí, um dia, o rapaz chega de mansinho e diz: amor, a gente precisa conversar. Ela já esperando pelo pior, pensando no álbum da fossa, se ia de Adele 21 ou Otto Certa Manhã. Acomodam-se os dois nas almofadas do chão da sala. O sol da tarde entrando pela janela, já sem cortinas. Ele diz: amor, não teve jeito, tive que vender mais um móvel. Qual? O toca-discos. Isso é sério? Uhum, aluguel tá foda né, mas olha, achei um LP ali naquele sebo do centro que você não vai acreditar.
Murilo.
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