
Quando chega em casa, já de madrugada, Ícaro descobre que perdeu as chaves. O motorista que o trouxe desaparece repentinamente. No escuro do inverno, sozinho e sem saber o que fazer, ainda um pouco afetado pelos efeitos da festa com amigos, Ícaro olha para os dois lados da rua e percebe que a uma quadra e meia de distância, uma pessoa estranha, de capuz, caminha em sua direção. Ícaro treme, a respiração muda de frequência. Maldita hora para perder as chaves. Maldito motorista três estrelas dos infernos. Impulsivamente pula, se agarra na grade e começa escalar para alcançar o outro lado. Mas na passagem, sem que perceba, a jaqueta fica enroscada nas lanças do portão. Ao jogar o corpo para enfim acessar o jardim da casa, Ícaro sente um puxão muito forte e leva meio segundo para entender que está pendurado na grade. Com o corpo pendendo na horizontal, sem conseguir encostar as pernas no chão, vê celular e carteira deslizando dos bolsos e causando grande impacto contra a calçadinha alongada que delimita o canteiro de flores. De longe, percebe que a tela do aparelho já era. Parece uma teia de aranha escura sobre um painel de luz inferior exibindo fragmentos indecifráveis do que, há poucos instantes, era uma conversa via mensagem de texto. Ícaro ouve o tecido das roupas estralando e abruptamente bate com a cabeça no piso esguio.
Abre os olhos e vê apenas vultos. Ao contrário da visão insegura, seus ouvidos parecem tatear cada pedaço de matéria ao redor. Sabe exatamente a velocidade e a distância da pessoa que se aproxima apenas prestando atenção na cadência dos passos. Por alguns segundos, muito mais longos que o relógio poderia assegurar, Ícaro sente aquele gosto acre da ansiedade que sobe das entranhas pelo conduto musculoso e atinge o fundo da boca, deixando tonto e nauseabundo a ponto de quase desmaiar. Mas é apenas um transeunte noturno. Ainda sem poder enxergar direito, Ícaro percebe que o caminhante se aproxima para em seguida se distanciar sem perder o ritmo. Um viajante determinado em chegar ao seu destino. Pisaduras rígidas e ágeis, sem nunca desconsiderar as condições da superfície do terreno e mantém os passos menos ruidosos. Depois que o viandante desaparece, Ícaro percebe o quanto se deixou levar por um medo que aparentemente não lhe pertencia. Era um problema se transformado em hábito.
Caminha por um longo corredor, passa pelos carros no estacionamento e entra no prédio pela porta dos fundos, que só fica encostada. Tudo escuro. Os sensores de presença que acionam as lâmpadas não funcionam. Ícaro olha para o alto e vê as escadas em espiral. Sem qualquer luz acesa, o conjunto de degraus se transforma uma serpente gigantesca, congelada pela Era glacial. Um monstro abissal e sua visão noturna que deixa Ícaro em clara desvantagem. Retorna à realidade e dá mais uns passos até o início da escada. O ambiente permanece surdo. Apenas o barulho dos radiadores a vapor do sistema de aquecimento produzem ruído no subsolo. Ícaro desce até lá e, em um dos armários do almoxarifado, apanha uma chave de fenda.
Armado com a pequena haste de metal, se sente mais seguro e sobe até o terceiro andar. Nenhum dos vizinhos parece estar acordado. Com auxílio da lanterna do celular, que ainda funciona, Ícaro desparafusa o espelho da fechadura e consegue observar a engrenagem lá dentro. Mete a chave de fenda em uma das aberturas e após um pouco de esforço, consegue mover a lingueta para trás. Com facilidade, gira a maçaneta e o trinco é liberado. Dentro do apartamento, acende a luz e Cassandra, sua gata persa casco de tartaruga, se espreguiça em cima de uma almofada sobre a escrivaninha e pisca os olhos lentamente. “A noite parece ter sido boa, hein”, diz ela com uma voz afetuosa, mas sem perder a ironia. “Foi demais até”, responde Ícaro tirando as roupas rasgadas, para em seguida jogá-las no corredor que dá acesso ao quarto e ao banheiro. Caminha até a cozinha e pega uma garrafinha de chá gelado na geladeira. Volta e senta no sofá vestindo apenas camiseta, cuecas e as meias. Cassandra sobe em seu colo e diz, “já passa da hora de dormir, nada de assistir essa tela ai”. Ícaro não diz nada, apenas acena com a cabeça.
Antes de tomar o chá em três goles rápidos, ele coloca a garrafa gelada contra a lateral direita da cabeça e sente certo alívio no calombo que se formou após a queda. Uma mariposa passa voando na sala. Ícaro observa as asas e aquele voo gracioso. Cassandra dá uns pulinhos tentando em vão alcançá-la. Ícaro se levanta e vai abrir a janela para libertar o inseto. Retorna ao sofá, puxa uma manta dobrada, se cobre e dorme subitamente, ali mesmo. É atacado pelo mesmo sonho que vem tendo há dias. Lembrança confusa de uma vez em que foi assaltado. As cenas e boa parte do enredo se alteram noite após noite, apenas o temor angustiante e a imagem da arma encostada entre os olhos, seguida do estrondo seco de um disparo que nunca aconteceu, sempre são os mesmos. Uma dissociação da psiquê longe de ser sanada. Dessa vez, porém, a mariposa estava lá, batendo as asas na substância fantasiosa do sonho, segundos antes de Ícaro ser acordado pelos raios do Sol.
—
escrito por Jadson André
imagem de Carol Rehbein