
Não há ninguém perto de você.
Vanessa pousa o celular sobre a bancada, desce as calças até a altura dos joelhos, senta-se na privada, sem poder esconder o incômodo com o frio, e pensa um pouco no absurdo daquela frase. Antes de começar a fazer força, ela volta a manusear o aparelho, alterando suas preferências de idade.
O festival de homens medíocres recomeça. São muito gordos, muito magros, muito feios ou ainda uma bizarra combinação destas três características (muito gordo E muito magro ao mesmo tempo, a diversidade humana não conhece limites, pensa Vanessa). A foto sem camisa, para mostrar o diâmetro dos braços, é a única constante. Vanessa pensa nessa ironia. Com seus 55 quilos e do alto de seus 1,65 metros de altura, ela não teria coragem de publicar uma foto de biquíni nesse tipo de aplicativos.
*splash
It´s a match!
A tela diz que ele se chama Marcos e em uma das fotos aparece segurando um cartaz escrito Fora Temer, ela pensa que isso é o suficiente para elevá-lo acima dos descamisados de sempre.
Marcos diz oi, quer tc? só o que eu sei sobre você é que você gosta dos pores do sol. Ela gosta do que lê. Ele parece um homem sincero. Talvez até demais. Quase chega a ser cara de pau, e ainda parece ter algum senso de humor e autoironia.
Vanessa tem vontade de responder que até que ele já sabe o bastante. De qualquer forma, sabe mais do que alguns de meus ex-namorados. Mas, justo neste instante, a água do vaso respinga com mais força, molhando suas nádegas. Na verdade não me sinto atraente o suficiente para retribuir o flerte, ela pensa, depois eu te respondo, ela diz à tela.
Quando Vanessa termina, o assento já está quentinho e confortável, e ela decide passar mais umas fotos antes de se levantar. De repente.
Não há ninguém perto de você.
O ponto final da frase lhe confere um incômodo ar definitivo. Ela se sente tomada por uma mistura de solidão e indignação. Resolve o problema da solidão com um raciocínio bastante simples. Estou no banheiro de casa, se não tem ninguém aqui perto, tanto melhor para todos os envolvidos.
O mal estar pela indignação é bastante mais indigesto. Em um ato de extrema revolta, ela diz que vive em uma das maiores cidades de um mundo com sete bilhões de habitantes, não faz sentido algum aquela afirmação.
O celular permanece impassível. Da foto de perfil de Vanessa partem círculos concêntricos, como as ondas de um radar, em busca de pessoas que atendam as configurações de Vanessa. E como quem está apenas fazendo seu trabalho, ele repete.
Não há ninguém perto de você.
Os enunciados performativos desempenham uma das funções mais complexas da linguagem. Com eles é possível criar ou alterar realidades. É por meio da função performativa que a sentença judicial declarando a culpa do réu converte, num passe de mágica, um cidadão respeitável em um criminoso.
Com a gravidade de um magistrado que bate o martelo, o celular-juiz repete que não há ninguém perto de Vanessa. Aquele verbo haver incomoda tanto. Tudo é terminativo e definitivo demais. Não há apelação possível contra um verbo que ninguém sabe conjugar.
Percebe, por fim, que está teorizando demais para não lidar com suas responsabilidades. É que a força dos enunciados performativos se concentra nas qualidades que se atribui ao emissor. Sou eu quem se importa com o que diz o aplicativo. Sou eu que me sinto só quando ele diz que estou só. Eu desejo desinstalar o app, ela diz ao celular, você tem certeza disso, o dispositivo pergunta, eu estou certa disso. Seu desejo é uma ordem, o celular ouve e obedece.
*ussshhuóóórlll
Ela observa enquanto a água trabalha para levar o passado embora. Lá se vão Caio, o mochileiro que só falava de si, Geraldo, o advogado que reclamou de mulheres que usam maquiagem, Miguel, que buscava uma companheira para um trio com a namorada, e Marcos, o manifestante de 32 anos.
Por um instante, Vanessa se lamenta. Marcos parecia um encontro interessante. Mas sem arrependimentos, ela pensa hoje quero estar sozinha, tanto melhor que não haja ninguém perto de mim.
texto: Marcelo Silveira
ilustração: Nina Zambiassi