Bairro Alto 1 7857

Carla olha pela janela do ônibus e pensa que odeia o inverno. Ela odeia o inverno não pelos seus efeitos, mas pela sua essência. Na verdade, ela adora dormir envolta em incontáveis cobertores, vestir pesados casacos, comer pinhão, principalmente daqueles que ela e os pais recolhem quando as pinhas despencam da araucária no terreno baldio da rua, tomar sopa, chocolate quente, chimarrão. Basicamente, tudo lhe parece mais gostoso no inverno. Ainda assim, ela o odeia.

“Paaai! Eu tive um sonho ruim.”

Quando pequena, era comum que despertasse durante a noite, perturbada pela solidão, pelo escuro e por criaturas que poderiam ou não existir. Carla jamais dizia “pesadelo”. Pensava que se o fizesse, seu “sonho ruim” se tornaria de alguma forma mais real, ou mais perene. Seu pai ou sua mãe se deitavam a seu lado até que ela dormisse, e os fantasmas que habitam os sonhos ruins partiam. Crianças têm medo de fantasmas, fantasmas têm medo de adultos, era o pensamento que a tranquilizava.

Para Carla, o inverno tem muito pouco a ver com as baixas temperaturas. As estações têm relação apenas com o ângulo de incidência do sol na terra. Ela odeia que a luz chegue obliquamente, porque anoitece mais cedo e, mesmo quando lhe toca o turno da tarde no trabalho, ela precisa caminhar no escuro as duas quadras que separam a parada de ônibus de sua casa, a mesma em que vive desde a infância.

O ônibus avança e Carla repara nas sombras e como elas mudam de forma e tamanho. As mesmas sombras que irão persegui-la naqueles 300 metros até o portão de casa. Ela tem vontade de encarar o medo bem nos olhos e dizer que dessa vez não, que ela o viu chegar primeiro e hoje não se assustará. Mas não consegue, prefere fingir que o medo não existe. Quem sabe assim ele deixa mesmo de existir.

“Mãnhê, eu descobri um jeito de não ter medo de noite!”

Aos cinco anos, Carla já se considerava grande demais para dormir com seus pais, até se perguntava o que seus colegas pensariam se soubessem que, à noite, ela os chamava e que eles se deitavam consigo até que ela pegasse no sono. Por isso, na manhã do dia em que desenvolveu o método para se proteger das garras sombrias que estavam sempre à espreita, a menina estava mais falante do que nunca. Queria explicar ponto a ponto que quando ela se cobria a cabeça, os monstros não podiam tocá-la, como se assim ela mergulhasse tão profundamente no escuro, que ficava longe de qualquer ameaça.

Ela olha ao redor do ônibus, procurando a garota que trabalha na loja de roupas do shopping e que vive algumas casas à frente. Curitibanos não sabem o nome de seus vizinhos, é verdade, mas entre as duas há aquela cumplicidade que só se desenvolve entre duas pessoas que enfrentam e vencem batalhas juntas. Quando a menina está no ônibus, Carla para diante de sua casa e se demora, faz de conta que procura na bolsa a chave do cadeado (o portão está sempre aberto, para que ela não precise se preocupar com isso), até que a companheira esteja segura. De qualquer forma, hoje Carla terá de fazer o trajeto sozinha.

Aos 30 anos já não pode se dar o luxo de inventar um método mirabolante que magicamente a proteja. Só pode contar com suas pernas para correr se percebe a presença de um homem desconhecido naquelas duas quadras que o inverno transformou em penumbra antes mesmo das 7 da tarde. O ônibus faz a conversão à esquerda para entrar no bairro, enquanto ela se levanta para solicitar a parada no próximo ponto.

Ela desce os degraus e tenta se convencer de que não há risco algum. Carla se lembra das inúmeras reuniões do grupo de discussão de gênero. Ela sabe que a maior parte das violações sexuais são cometidas por conhecidos, normalmente algum parente próximo, e não por estranhos em becos escuros. É inútil, as pernas tremem a cada passo.

São apenas duas quadras. A teoria da relatividade diz que tempo e espaço são relativos, e podem se contrair ou se expandir. Ela quase ri ao pensar que os homens mais ilustrados da história levaram séculos de observação para perceber um fenômeno que qualquer mulher vive diariamente.

“Boa noite. Durma bem. Te amo. Até logo.”

Era assim que a pequena Carla se despedia dos pais quando eles iam a sua cama desejar-lhe boa noite. Ela não queria que eles fossem embora, e “tchau” parecia uma expressão muito definitiva. Às sete horas e cinquenta e nove minutos da manhã ela se levantava e descia as escadas para encontrar os pais tomando café. Tomava o seu com leite e açúcar, convencida de que essa cena se repetia graças à força daquela profecia: “Até logo.”

À medida em que se aproxima do destino, seus passos ganham segurança. Não quer que os pais saibam que ela ainda é a mesma garota assustada que fora quando criança. Quando chega, alcança flagrar o rosto da mãe na janela, escondendo-se atrás da cortina. Ato contínuo, seu pai abre a porta e acende as luzes exteriores. Esta noite, todos dormem bem.

Ilustração: Talitta Reitz

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Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Vida comum parte 1 0 5158

Vida comum parte 1

Véspera de feriado, antes da meia-noite e eu já com meia garrafa de conhaque na mente. Curtia me derreter no gole, de dose, de lata, de garrafa, de todo jeito. No feriado rolou um churrascão que nem lembro se comi, dropei umas caipiras antes de acender o fogo e fiquei mais preocupado com a temperatura das garrafas que da carne. Sábado a ressaca com a mão pesada, tava batendo forte, contra-ataquei com uns latão, encostado nos fundos do posto com a rapeize, só flagrando os doidinho tirando uns racha de Parati, Chevette e Gol Chaleira. Domingo rolou rave na região metropolitana, no meio do mato, não virava ir de bonde, botei uma gasolina na Bizz e meti o pé; duas carteiras de Minister depois já tinha descido whisky com energético, vodka com suco, vários ampola, um doce e umas água colorida que os parceiro botaram, sei lá qual fita, puta gosto de remédio. Bati a nave antes da hora, cheguei em Grayskull sem nem aproveitar a viagem, ensaiava falar e não saia voz, tava tenso, me mordendo, fiquei nervoso: deu bad. Tentei endireitar a caminhada tomando umas águas, mas não rolou, a conta não batia, os dentes rangendo, coração agitado querendo se mudar do peito. Precisava voltar pra minha goma, tomar um banho, talvez dois, sei lá, só precisava vazar, montei na moto e fui. Tava com dois IPVA atrasados, cabreiro de cair numa blitz, e se soprasse um bafômetro explodia a máquina – certeza. Queria chegar logo, entrei no modo Valentino Rossi e corri a milhão, como se fosse fuga. Foi aí que deu ruim no piloto automático, se pá que dormi em cima do jato, lembro só de uns clarão, uns flash. Vi o céu por baixo, deitado no asfalto, sei lá qual fita, tudo nublado, que dia bosta. Me liguei e já tava todo remendado no hospital, numa sala com umas vinte cabeça, todo mundo fudido, uns mais outros menos. Eu? Era cabeça de chave do grupo dos desgraçados: com a lata do frankstein, olho roxo, cara inchada, nariz quebrado, uns ponto na testa. Trinquei uma costela e quebrei outras duas, a clavícula rachou e a mão tava na carne viva. O médico foi desenrolando essa lista aí e eu aceitando na moral, os pensamentos embaçados, cheio de analgésico, todo bagunçado de dor. Aí teve uma mão que ele deu uma pausa, ficou mais bolado e mandou A real: disse que eu sofri um choque cabuloso no quadril, perdi mais de 80% do fígado, que num tinha como dizer o tamanho real do estrago, mais uma fita era certa, nunca mais ia poder beber, se tomar meia lata que seja, posso encomendar o caixão. Acordei umas três vezes crente que tava tendo um pesadelo, foquei umas horas que tava numa brisa errada de doce. Mas não. A vida é uma viagem desgraçada.