Sentido: Conceito Abstrato 1 2925

Redimunho? Uuhuulll!

A confusão – que costuma presenciar momentos singulares – toma conta da linha de raciocínio. Os olhos buscam enquadrar, a já inexistente materialização visual cristã do espírito santo: o vento. Girando a cabeça inquietamente, a adrenalina nubla o discernimento e confunde a compreensão fina do que é real e inventado. Um redemoinho passou muito rápido; as lentes da câmera não registraram o que os olhos captaram para sempre.

Seguinte, acabou de passar um tornadinho aqui.

Enfim as mãos oscilam um pouco menos, o foco volta a auxiliar o mecanismo ocular, é hora de assimilar o contato obtido – pouco frequente para habitantes de grandes centros – com as forças particulares da natureza. Todo mundo já viu um furacão na televisão e já sentiu o toque grosso do vento num dia de transtorno, guardadas dimensões, o redemoinho tropical é um fenômeno que mimetiza visualmente o furacão ao passo que tem força similar à da ventania. Numa já estabelecida era, em que boa parte do tempo é vivida através de telas, não ter filmado um evento raro, é algo, já naturalmente, passível de lamento.

Alá outro ali, olha lá. Tá formando outro, cara. E ele tá passando aqui na beirada, mãe!

Uma lufada de esperança traz a sensação de verdade e justiça. Enfim as lamúrias foram atendidas, as reclamações lançadas ao mundo surtiram efeito. A terra levanta timidamente do chão e já é possível delimitar o espaço visual do ar, agora é a hora da verdade, de sentir a benção ou as agruras do tal redemoinho. A câmera capta imagens corajosamente, como quem aperta a mão de alguém olhando nos olhos.

Olha lá, formou. E tá dando um arco-íris aqui agora! Olha a água! Olha alí! Mamãe! É Deus, Mamãe!

O redemoinho, que remexe o chão à margem do rio, parece nutrir-se da energia e empolgação humana ao seu redor, gira com maior intensidade e transfere seu espetáculo para o centro do córrego. O fenômeno, que já impressionava, torna-se épico: um magistral arco-íris se forma repentinamente na água. O entusiasmo é tão intenso quanto a paleta de cores que desponta a poucos metros das lentes. E quem mais especial para compartilhar esse instante que sua própria mãe? Mais que isso, sempre é possível duvidar de fenômenos óticos de terceiros, mesmo os registrados em vídeo podem sofrer acusações de edição tendenciosa; ninguém, no entanto, duvida da palavra de uma mamãe. Os gritos mesclam desespero e comoção, o que vem a seguir? Vozes celestiais, corpos com chagas, Deus veio nos salvar ou nos arrebatar?

Deu uma onda, cadê nossa prancha? Olha um cavalo branco ali! Olha um cavalo branco aparecendo ali do lado, olha lá!

Uma onda levanta-se sutilmente na superfície, com força suficiente para levar um barquinho de papel. O sistema todo foi afetado, tudo parece ser motivo para gritar, o exagero também insiste em ter seu nome registrado nessa história. Enquanto a câmera ainda foca na modesta onda, a locução já anuncia: um cavalo branco vai entrar em cena. Sim, aparentemente o equino simplesmente surgiu nessa já povoada trama, mas como? Quem trouxe esse animal para cá? Meu Deus, e como ele é branco e sereno, parece recém tirado de um panfleto feito por Testemunhas de Jeová. Se Drürer tivesse visitado esta cena, quinhentos anos antes, certamente teríamos uma bela gravura exposta no Louvre, ao lado da Mona Lisa.

Eu filmei tudo, mamãe! Eu filmei tudo, é Deus! Olha lá o cavalinho branco!

O enquadramento volta a ser objeto da confusão, vai de um lado a outro até se decidir pelo cavalo, que bebe água tranquilamente à margem do córrego. A mãe enfim chega na cena, discreta, emanando suavidade e plenitude; e como não poderia deixar de ser, tenta ensinar algo para o filho, enquanto também faz esforço para absorver toda a cadeia de eventos recém demonstrados.

Isso é Deus mostrando o poder dele, que ele existe. Ó Pai, eu entendo Senhor, eu entendo. O teu poder, Senhor. É o teu poder Senhor, tem misericórdia de nós, ó Pai! Somos pecadores, não merecemos o teu amor mas tu és poderoso!

A mãe começa seu discurso num tom acanhado, ainda ligando os pontos de toda essa materialização divina. Conforme as conexões vão sendo feitas a voz vai subindo e embargando. Ela luta para assumir o protagonismo da cena, é o seu ato, seu momento na peça. E o figurino não poderia ser mais adequado, despida de pudor e coberta de inocência, traja apenas um sutiã branco, imaculado.

Acabou de formar um tornado aqui, no meio da água.

O comentário do filho ignora toda a tentativa de pregação da mãe, é realmente difícil cativar a atenção dos jovens quando sugados pelos seus gadgets. Se bem que nesse caso, a distração é compreensível.

É o poder de Deus! É Deus mostrando o poder! É Deus falando: Eu estou aqui! Clamem! Me peçam e eu darei, eu tenho o poder, eu tenho o poder! Isso é ele falando eu tenho o poder, olha o que que eu faço!

Não me surpreenderia se uma bíblia surgisse nesse enredo, daquelas de bolso, tiradas de dentro do sutiã, seria a cena perfeita, mas Deus nem sempre faz as coisas do jeito que a gente deseja. Quase nunca.

E esse cavalo branco aparecendo?

O cavalo branco segue brilhantemente compondo o fundo da cena. Não existe apego ao foco, nunca vai existir. Mas e mães costumam desistir fácil? Também não podemos contar com isso.

E você viu o arco-íris? Ele mostrou o sinal da aliança! Você sabe o que é que é o arco-íris? – Deu uma onda! – Espera, presta atenção! Na bíblia tá escrito, toda vez que vocês virem um arco-íris essa é minha aliança com Noé! Nós somos a descendência de Noé! – E esse cavalo branco, ainda? – Essa é minha aliança com Noé! Olha aqui ó, aqui tá o símbolo da minha aliança! E olha aqui, cê filmou? – Filmei tudo! – Misericórdia, Senhor, eu te clamo em nome de Jesus! Eu creio no teu poder, eu creio na tua infinita bondade! Eu creio em ti Senhor, como Deus dos Deuses, como mestre dos mestres, como santo dos santos, como senhor dos exércitos celestiais; como senhor de Abraão, de Izak e de Jacó! Perdão Senhor, perdão! Perdão pela nossa desobediência, pela nossa ignorância! Perdão Senhor eu sei que nós somos imundice, trapos de imundice! Mas tu és bom! Tu manténs o Deus Poderoso! O capaz de transformar, o capaz de mudar, o capaz, Senhor, de operar nas nossas vidas! Tenha misericórdia, Senhor! Eu tô pelada, e você tá me filmando? Eu to queimando. Mas eu sou a favor, eu falei, Deus não fez o homem vestido não, Deus fez o homem foi nu!

A mãe enfim parece ter absorvido melhor as visões, começa a assimilar seu discurso com o fenômeno do arco-íris; ainda assim, sua voz apesar do tom de pregação, permanece um pouco carente. Ao que parece, a falta de atenção não denota desrespeito, é uma mistura de caos com DDA que controla voz por trás das lentes. A mãe insiste, protesta e pede atenção de forma mais incisiva; e é incrivelmente atendida, por cerca de quatro segundos. O enquadramento, que contemplava a mãe em primeiro plano – enquanto ela gesticulava de modo similar aos apresentadores de programas policiais –, muda para o cavalo. É aplicado um zoom capaz de auxiliar numa análise clínica da pelagem do animal, o bicho é realmente lindo, indubitavelmente nenhuma testemunha de Jeová seria capaz de pintar um cavalo tão perfeito. A mãe percebe o desvio, troca rapidamente o discurso por um breve diálogo e o enquadramento volta a contemplá-la. Chegou a hora de brilhar, a voz carregada de emoção começa a descrever sua paixão pelo divino. A oratória comove tanto, que o zoom chega até seus poros, mas logo vai embora (obrigado, Deus). O cavalo enfim deixa o quadro, o novo ângulo agora adiciona à cena algumas pessoas inquietas ao fundo em contraste com um carro estacionado. Mamãe sabe o peso de suas palavras, fala e já ensaia sua retirada, seu ato terá um desfecho em breve. O operador de imagem resolve nos mostrar de corpo todo o traje da interlocutora, felizmente um shortinho branco menos ousado faz par com o sutiã. Ela ensaia uma vergonha por sua falta de roupas, mas a gente sabe que tudo faz parte do roteiro, a voz vai se afastando conforme a câmera torna a focar o rio, o ato de mamãe então tem um fim.

O primeiro tornado eu perdi, mas o segundo tornadinho que passô…nós filmamos!

Não há mais discursos, redemoinho, ondas, arco-íris ou cavalo branco. Tudo foi, sobrou a insistência em permanecer filmando.

Dessa vez eu vou te falar, até eu arrepiei! – Deu pra filmar? – Eu arrepiei velho, arrepiei!

A câmera resolve se afastar da beira do riacho, vai de encontro com outro núcleo da trama, composto por espectadores menos emocionados com o acontecimento todo. Nada do que se passou foi o suficiente para tirá-los de seus afazeres: deitar na rede e beber cerveja. O nosso herói vira as lentes para si, os óculos escuros encobrem análises mais profundas, porém tais exames são dispensáveis, o próprio nos confidencia seus sentimentos.

Centraliza a Vanessa também, só virar o tripé um pouquinho. – Eu não sei pra que lado. – Pode virar, só virar. – Mais? – Tá bom. – Deus no redemoinho, Deus no redemoinho! – Cês tão vendo ocêis, né? – (Risos) – É bonito ver o povo bonito, não é? – Eu acho o maior barato. – (Voz inaudível) – Fala isso não, bate na boca. Todo mundo é bonito. – Todo mundo é bonito, só que tem uma beleza diferente. – Me desculpe as feias, mas beleza é fundamental. – Cê tá chato demais, deixa eu filmar esse meu primo aqui, gente, ele tá muito seletivo. Eu tô no politicamente correto. – Skol! Desce redondo.

A rede e a companhia de pessoas de sua idade parecem oferecer conforto, enquanto nosso provedor de imagens se acomoda é possível ver a silhueta de um cavalo no pingente em seu pescoço, é provável que ele use esse colar há anos, duvido que se lembre disso agora. Como todo bom diretor, ele preza por boas imagens, coordena o enquadramento do take que contempla sua companheira ao seu lado na rede. Ao fundo, em outra cena, ouve-se mamãe, mas logo sua voz some. Irradiam-se comentários sobre a beleza do casal, todos riem, todos dissertam sobre a beleza humana, ninguém parece se importar com o redemoinho, menos ainda com o cavalo branco. Um incômodo mal disfarçado toma conta, qualquer desculpa é válida para abandonar o posto e se reunir com quem também foi tocado pelo divino. No caminho ainda há tempo de promover mais uma interação tão bizarra quanto fugaz, com alguém que está muito contente em carregar uma cerveja cheia e que aparenta ter propensão a proferir slogans sem sentido. Fim do ato dos incrédulos.

Eu te peço ao senhor agora. – Tu és o Senhor. – Que porra é essa? Vai só o restinho. Tá fazendo gelo? Aí não tem jeito não. Vai, passa aí pra eu ver, melhorou bastante. – Cê filmou o negócio? – Filmei, tá tudo aqui.

O contraponto é parte essencial na obra: assim que o perímetro ocupado pelos descrentes é abandonado, hinos evangélicos celebrados aos berros tomam a narrativa de assalto. Duas pessoas ouvem música no banco da frente de um carro: mamãe (claro) e um menino bastante jovem, de olhos tristes. A câmera se desvia brevemente para a gênese de tudo, o rio; enquanto um diálogo, tão estranho quanto incompreensível, é abafado pela música. A criança aparentemente sofre por ter machucado o tornozelo, faz uma compressa modesta, com apenas uma pedra de gelo, no local magoado. A essa altura mamãe abandona o veículo, sem nem dizer para onde vai, provavelmente tem destino similar ao do cavalo branco. O menino não dá indícios de que gosta da cena; gelo, hino e machucado parecem só existir para punir. Preocupado em não ter presenciado os fenômenos de perto, ele quer saber se foi tudo filmado. Espero que ela não tenha visto o vídeo todo, apesar de duvidar disso. O gelo volta a queimar a pele, o registro final é de uma cara sofrida, de dor, mágoa e desgosto, como de quem acusa o golpe e está prestes a perder a luta. No entanto, fico tranquilo, refaço mentalmente os segundos seguintes que o filme não mostra, com a certeza de que nesse dia o único derrotado foi o bom senso do universo.

Escrito pelo Gabriel Protski

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Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Vida comum parte 1 0 5018

Vida comum parte 1

Véspera de feriado, antes da meia-noite e eu já com meia garrafa de conhaque na mente. Curtia me derreter no gole, de dose, de lata, de garrafa, de todo jeito. No feriado rolou um churrascão que nem lembro se comi, dropei umas caipiras antes de acender o fogo e fiquei mais preocupado com a temperatura das garrafas que da carne. Sábado a ressaca com a mão pesada, tava batendo forte, contra-ataquei com uns latão, encostado nos fundos do posto com a rapeize, só flagrando os doidinho tirando uns racha de Parati, Chevette e Gol Chaleira. Domingo rolou rave na região metropolitana, no meio do mato, não virava ir de bonde, botei uma gasolina na Bizz e meti o pé; duas carteiras de Minister depois já tinha descido whisky com energético, vodka com suco, vários ampola, um doce e umas água colorida que os parceiro botaram, sei lá qual fita, puta gosto de remédio. Bati a nave antes da hora, cheguei em Grayskull sem nem aproveitar a viagem, ensaiava falar e não saia voz, tava tenso, me mordendo, fiquei nervoso: deu bad. Tentei endireitar a caminhada tomando umas águas, mas não rolou, a conta não batia, os dentes rangendo, coração agitado querendo se mudar do peito. Precisava voltar pra minha goma, tomar um banho, talvez dois, sei lá, só precisava vazar, montei na moto e fui. Tava com dois IPVA atrasados, cabreiro de cair numa blitz, e se soprasse um bafômetro explodia a máquina – certeza. Queria chegar logo, entrei no modo Valentino Rossi e corri a milhão, como se fosse fuga. Foi aí que deu ruim no piloto automático, se pá que dormi em cima do jato, lembro só de uns clarão, uns flash. Vi o céu por baixo, deitado no asfalto, sei lá qual fita, tudo nublado, que dia bosta. Me liguei e já tava todo remendado no hospital, numa sala com umas vinte cabeça, todo mundo fudido, uns mais outros menos. Eu? Era cabeça de chave do grupo dos desgraçados: com a lata do frankstein, olho roxo, cara inchada, nariz quebrado, uns ponto na testa. Trinquei uma costela e quebrei outras duas, a clavícula rachou e a mão tava na carne viva. O médico foi desenrolando essa lista aí e eu aceitando na moral, os pensamentos embaçados, cheio de analgésico, todo bagunçado de dor. Aí teve uma mão que ele deu uma pausa, ficou mais bolado e mandou A real: disse que eu sofri um choque cabuloso no quadril, perdi mais de 80% do fígado, que num tinha como dizer o tamanho real do estrago, mais uma fita era certa, nunca mais ia poder beber, se tomar meia lata que seja, posso encomendar o caixão. Acordei umas três vezes crente que tava tendo um pesadelo, foquei umas horas que tava numa brisa errada de doce. Mas não. A vida é uma viagem desgraçada.