
I
a noite aqui fora tá um pouco opressiva, graças ao bafo úmido que levanta do asfalto depois dessas chuvas de verão. passa pouco das oito da noite e eu mando um zap pra Cíntia, ver se ela precisa de algo em casa. “Traz um pão de azeite de oliva pra mim”, ela pede num áudio. quase envio uma mensagem perguntando onde encontrar um negócio tão específico, mas assim que olho pra frente me deparo com um local metido a besta, o típico estabelecimento que venderia pão de azeite de oliva. nunca vi esse prédio. entro, o lugar é descolado, projetado pra ricos moderninhos. uma espécie de galpão abandonado, de pé direito alto e arquitetura estranha, com várias lojas e restaurantes que ficam nas paredes, pelas quais o cliente passeia usando rampas. roupas, massas, eletrônicos, brinquedos artesanais. tipo um shopping pra quem quer se sentir integrado à região mas sem correr riscos.
um conjunto formado por vozes masculinas e femininas, flautas e percussões está distribuida ao longo do térreo e toca uma música em tom menor, bem bonita, lindíssima. é emocionante. choro um pouquinho e sinto uma vontade inexplicável de comprar romãs. peço por romãs, não as encontro, mas de rolê pelo galpão sou abordado por uma senhora, sentada num café afetado. “Psiu. Você quer romãs? Eu sei onde tem”, ela fala, feito gato, e me estica um cartão pessoal com nome que nem leio. “Lá perto de casa as romãzeiras estão carregadíssimas”, mia. sorri.
II
quando noto, estou descendo de um carro. percurso curto, que rua é essa? a velha me convence a entrar na casa porque precisa avisar qualquer coisa pra filha antes de me mostrar onde acho romãs. ela tem um desenho excêntrico, me deixa confuso, como se um sorrisinho malicioso estivesse grudado pra sempre em um rosto antigo e marcado por muitas mudanças. o cabelo platinado, quase branco. ela começa a falar estranho comigo, “Nossa, você é muito lindinho”, pergunta meu nome, respondo “Paulo. Paulo Braga”. meu nome não é Paulo e meu sobrenome não é Braga e eu não entendo mais o que estou fazendo. a senhora me pede licença e sai do cômodo e nisso a filha entra. igual, mas o cabelo é preto e o rosto é jovem. começa a fazer perguntas inúteis, ela também fala miando. “De onde você é?”, questiona, respondo “Minas”, mas eu não sou de Minas. “Ai, que fofo! Que bom que você vai vir pra cá, passar sotaque pra minha mãe”.
vir pra cá? passar sotaque? do que essa moça tá falando? explico que na verdade sou gaúcho, de Pelotas, e nada muda na dinâmica da conversa. tento me distrair pensando em quando vou finalmente comer as romãs, mas o cômodo tem um ar estranho, um perfume me sufoca e confunde. enquanto a jovem mia bobagens e amenidades, tiro o celular do bolso e jogo no Google o nome da coroa, que copiei do cartão. nome diferente, nunca li nada assim. “Que línguas você fala?”, ela, “Inglês e espanhol”, eu, “Ótimo, mamãe fala muitas outras, já podem viajar bastante”. o clima não tá legal, eu não quero viajar com ninguém, eu fico tenso, o 4G não funciona direito. “Mamãe teve vários homens mas nenhum nunca deu certo. Acho que nenhum estava realmente pronto, sabe? E sempre acabam sumindo, hehe”.
III
fito a tela. a busca está completa. leio os resultados.
travo.
congelo.
IV
reúno forças e levanto e percebo a velha de volta ao quarto. sorrisinho, vestido e véu vermelho-sangue, quase flutua. penso em correr, mas um miado calmo soa como se viesse por toda parte, formando palavras que mais soam como portas que se fecham.
“Aonde é que você pensa que vai? Você fica. Você não vai a lugar nenhum”.
texto do Rômulo Candal
visual do Marco Antonio