
beats by dre cyber monday
Para Eduardo de Jesus
Desde o balaço no meio da testa, numa sexta-feira de sol, Dudu não sentiu mais os dedos do pé esquerdo, tampouco a fadiga ao subir os degraus do morro para chegar até em casa. Sabe que morreu. Viu-se cair ao chão; percebeu o sangue empapar o concreto fresco e as pessoas à sua volta, ouvindo, fundo na cabeça esburacada, alguns gritos de socorro! Ainda lembra dos gritos virarem eco distante; da vista embaçada; de ter pensado nos carrinhos de coleção sujos de si mesmo; de dormir.
***
Acordou três dias depois, cheio de terra e cimento. Tinha entre os olhos o sangue seco, e um terninho, que usara pela última vez no casamento do tio, apertava-lhe o corpo magro e embolorado. Morrera, mas estava ali, entre os caixões de verdadeiros defuntos. Queria voltar o quanto antes para casa, abraçar a mãe e dizer que a morte era mentira para a família Silva. De felicidade tentou correr, mas, como nos sonhos, as pernas não cumpriram a missão. Trotava forçado.
Subiu os incontáveis degraus, virou no beco ao lado da quadra de bola, esgueirou-se por entre os vapores da noite. Mãe!
– Aí está, Eduardo. Troque de roupa, esse terno custa uma fortuna e você ainda vai acabar manchando ele de sangue.
A recepção áspera dos dias corriqueiros assustou o menino, afinal, aos dez anos a emoção é grave. Saiu porta a fora carregando apenas o peso do ressentimento.
Conforme caminhava pelas tão conhecidas bibocas, as familiares ruelas e cumprimentava gente que em momentos menos especiais já lhe tratara melhor, Dudu notou que, diferente do que pensava, não era somente a mãe a não se surpreender com o retorno. Sonho?
Voltou à cena. O sangue ninguém lavou. Os carrinhos já não estavam lá – os outros garotos com certeza pegaram. Seus miolos, como pequenas larvas, jaziam, fritos pelo sol dos três dias anteriores, no cimento seco. Morrera, de fato.
– Ei, moleque. Rala daí! Quer morrer de novo?
Era voz desconhecida, mas sabia de sua morte.
***
Com o passar do tempo, e a leveza que começava a sentir em cada membro, Eduardo acostumou-se à rotina outra vez. Apenas à escola ainda não tinha voltado, esperava o furo na testa diminuir – não queria ir feio.
– Eduardo, aula! E já mandei tirar o terno – não conseguia, as mangas e a gravata grudaram na pele.
Tentou esconder com o boné, passar a base da irmã, desenhar uma monosselha. O tiro de fuzil seria marca eterna, havia concluído. Dudu, o Harry Potter pretinho. Não havia outra opção, iria à escola, à faculdade, ao trabalho, ao nascimento dos filhos e ao enterro da esposa com o rombo na testa.
– Vão te chamar de três olhos!
***
No caminho para a aula, o garoto reparou nalguns transeuntes. Uma multidão desolada, como sempre, de pés descalços ou chinelos de dedo, as mesmas regatas e mochilas pesadas. A diferença estava na testa: um orifício sanguinolento, central, em todos aqueles que lhe cruzavam os passos. Nova moda da periferia – ou então estariam zombando – Dudu não sabia se deveria se sentir acolhido ou ofendido e, fosse pela confusão do momento ou miragem, pôde jurar ter visto, sobre os chinelos de alguns, dedos do pé esquerdo idênticos aos seus.
***
A escola continuava a mesma dos tempos prévios. O menino respirou fundo o vento forte da manhã. Admirou o parquinho posicionado na entrada do prédio: duas gangorras e um escorregador. O balanço e o deslize, e certa falsa paz ao deixar-se guiar pelo movimento dos brinquedos.
Por dentro as coisas mantinham-se também iguais, não precisou de ajuda para encontrar a sala. Os colegas, de praxe, mal cumprimentaram – crianças. A professora postou-se em frente à classe, abriu o livro de chamada. Amanda, Bento, Claudia, Dora.
– Eduardo Silva.
Eco reverberou, fazendo chão e teto tremerem em frequência; as mesas tombaram, lâmpadas se quebraram, assim como todas as janelas. O morro criando voz e dedos dos pés. Toda a favela, colegas, vizinhos, amigos, a mãe responderam num só tom: presente.
O corpo de Dudu se esvaíra enfim, na carteira que ocupava restaram alguns cogumelos.
Texto de Mateus Senna.
Imagem de Marceli Mengarda.