feat. Rodrigo Ul
Meu Pai, homem de poucas palavras, nascido em um Brasil que já não existe mais. Das novelas de Guimarães Rosa à Graciliano Ramos, ele era a própria caricatura do Brasil profundo. Na expressão, carregava consigo a dor da vida, uma mistura de compaixão e raiva em um hábito duro que refletia nas suas decisões. Solitário em seu andar, ninguém conseguia saber o que realmente pensava. Quando algo lhe aborrecia profundamente, logo tratava de dissimular e emboçado nesse teatro, guardava para si como aquele objeto que guardado por muito tempo acaba sendo esquecido. Um homem que nunca gostou de mudanças. Para ele, o habitual bastava, era previsível e lhe produzia segurança. Tudo que pudesse deslocá-lo deste “lugar” era tratado de forma bruta, em tom grave. A autoridade com que falava fazia o ouvinte logo adquirir um sentimento de respeito e segurança. O limite que ele se impunha subjetivamente traçou a trajetória de toda a sua vida. Para ele, não importava o que outros diziam sobre sua pessoa, caráter inflexível, a vida era o único meio do qual ele aprendia.
Então, a vida passou e como acontece com qualquer um abriu o caminho que meu pai desejava. Aos 64 anos ele se via sozinho, ensimesmado, discutia com pensamentos e às vezes até se percebia em estado de cólera por situações passadas, quando ele sentia que alguém tinha notado seu monólogo, como de costume, tentava empregar uma brincadeira ou algo que pudesse velar seu estado alucinatório.
Jamais conheci meu pai, e jamais ele deixou seus devaneios de lado e se permitiu à vida. Isso se estendeu por mais cinco anos, até o momento que o vi se deparar consigo mesmo.
Deitado em um colchão sem lençol, a luz amarela impregnava o ambiente com um clima nostálgico. Minha mãe, com uma expressão de quem espera esse momento há muito tempo, se despede de meu pai com um suave beijo em sua testa, afirma que em breve o encontrará e me deixa com ele dizendo: agora é só esperar.
Eu e esse homem que me é desconhecido, penso, o fito longamente. Um silêncio se instaura no quarto, vejo-o agonizando imóvel, toda sua segurança se esvaiu como poeira no vento e de repente observo uma lucidez em seu olhar, me dei conta que ele percebia tudo, toda sua vida estava ali naquele curto momento, as recordações lhe mostravam o cerne do seu absurdo, todas as suas pendências, tudo que por medo desistiu, tudo que preferiu negar, tudo que era ele mesmo e que em um dado momento se traiu, a dissimulação, a vergonha… A memória trazia à tona as pessoas, as coisas e as situações mal resolvidas, como se aquele momento fosse a oportunidade, a única possibilidade de fazer aquilo que se negou em toda a vida… Assim foi, de revelação em revelação, entregue ao império das circunstâncias, até o momento de um suspiro intenso e forte. Afrouxa seu corpo tenso e vai, nem uma palavra meu pai me dirigiu, porém foi o maior aprendizado que ele me passou.