Mas, tarde da noite 0 904

A casa tem três quartos, uma cozinha pequena, um quintal grande e uma parede com pintura tão gasta quanto as palavras. Essas paredes não falam, e é melhor que seja assim, porque senão iam ter aberto um berreiro pra expulsar os atuais locatários, quando de um aniversário que terminou com uma viatura de polícia na porta por causa do barulho, seis meses atrás. Hoje é a última noite desse time, pelo menos ali.

Festa de despedida: todo mundo parece feliz, mas é só bebida.

Todo mundo parece meio igual no escuro, de forma que Aldinei demora um pouco para distinguir Zélia entre os 62 presentes. Ele a procura há dez minutos, perambulando por todos os cômodos, enquanto finge que procura, na verdade, pelos donos da festa, para agradecer pelo convite, desejar boa sorte na nova empreitada deles, ou outra bobagem desse tipo. Todo mundo sabe do caso de Zélia com Paulo, menos Aldinei. Uma pena. Mas ele vai encontrar o amor verdadeiro. Não hoje, claro. Daqui um ano e pouco, numa aula de ioga. Está escrito. Ele encontra Zélia chorando num canto de um quarto, e dá um oi meio tímido, esquisito. Aldinei jamais terá o prazer de conhecer um bom método para começar uma conversa interessante com alguém que está chorando.

Todas as malas estão feitas, e todos os móveis foram hoje mais cedo num caminhão de mudanças da empresa que fez o melhor preço dentre as consultadas. A falta de geladeira na festa é compensada por gelo e caixas térmicas, que muitos trouxeram de casa. Um monte de gente não trouxe nem gelo, nem caixas térmicas, nem bebida, e foram orientados a comprar alguma coisa num posto de gasolina 24h a algumas quadras da casa. Há também quem não beba. Mas estes costumam se virar bem. Alguém pegou um batom e resolveu escrever numa parede. A imobiliária vai citar isso no relatório de vistoria de entrega do imóvel.

Quadros: nunca tiveram.

Flores: dois arranjos artificiais, que estão indo para o novo endereço em alguma caixa.

Tapete: um, que ficava na sala, e que hoje fede a urina. A peça foi doada pela mãe de um dos três locatários. A história da urina aconteceu há cinco semanas, mas não é engraçada.

O ambiente. O clima. Há sofrimento, alegria, tristeza, sensações de culpa por motivos variados. Saudade, curiosamente ou não, quase não há. Música alta. Duas pessoas vão começar a considerar o suicídio a partir de hoje, mas só uma delas, uma moça, vai de fato tirar a própria vida, daqui seis anos, já sem lembrar de nada desse evento. Ela vai pular na frente de um ônibus. Bem feio. Uma enfermeira vai descer do coletivo, só para constatar o óbito, tão óbvio. Triste, triste.

Oito casais se formarão até o fim da noite. Por fim de convenção, digamos que um relacionamento sério dura mais que dezesseis semanas. Nesse parâmetro, apenas dois desses novos pares terão sucesso. Três casais vão se separar hoje, ou em decorrência dos eventos de hoje. Uma moça vai alegar que o namorado dela gasta muito tempo com pessoas “nada a ver”, seja lá o que isso significar. As fotos de hoje deles juntos, no entanto, estão saindo todas muito bonitas.

Uma das meninas que está na casa passou o dia procurando emprego em restaurantes do centro. A experiência profissional dela se resume a uns dias na cozinha de uma ONG, mas ela foi bem instruída pela mãe nos truques da culinária barata e saborosa. Ela cozinha melhor que conversa. Sendo assim, não soube expressar que vagas a interessavam. Ofereceram a ela funções de assistente de cozinha e caixa, sendo que a atividade de caixa pagava ligeiramente melhor. Um cara ficou de ligar para ela até daqui quatro dias, se os chefes dele gostarem do currículo. Faltam 26 minutos para ela ver e se interessar por um cara meio esquisito, que cantava numa banda emo chamada Fullminant Heart Atack, fundada em 2011, já alguns anos depois do estouro do fenômeno ultraconfessional da música adolescente. A música que o grupo produzia não passava de um simulacro, quando não pura cópia, de tendências rítmicas e melódicas de grupos que fizeram relativo sucesso em círculos restritos. Esse jovem, autonomeado Jay, ainda que Jonas seja, merece um espaço maior, mas não hoje. A moça não é lá tão interessante assim, apesar de que se esforça bastante para parecer. Ela desce a escadaria e mistura vodka com alguma coisa num copo de plástico, momentos antes de lembrar que está sozinha e sem muito o que fazer. Acontece, sobretudo quando a noite é perfeita para a busca do amor.

Aldinei decide ir embora, mas não vai.

Um grupo conversa de forma animada e pretensiosa sobre os “rumos das coisas, tipo arte, e… sei lá, saca?” no quintal. A conversa não leva ninguém a lugar algum, e serve mais para que estes jovens exibam supostos conhecimentos aos pares. O momento é mais interessante que importante. Um deles acaba de ver a primeira namoradinha por acaso, num ônibus, apesar de que a expressão namoro não tenha muito a ver com relacionamentos entre crianças de sete anos. Ele se pergunta agora pra onde ela foi, onde mora, o que fazia ali, e esse tipo de coisa. Se tivesse perguntado diretamente pra ela não estaria com o assunto na cabeça. Mas que seja, e que fosse. Ela mora no lugar de sempre, a propósito.

A festa segue sem grandes sobressaltos, numa fiel representação da vida.

Marco Antonio Santos

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Escala de Baumé 0 5052

Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Vida comum parte 1 0 5198

Vida comum parte 1

Véspera de feriado, antes da meia-noite e eu já com meia garrafa de conhaque na mente. Curtia me derreter no gole, de dose, de lata, de garrafa, de todo jeito. No feriado rolou um churrascão que nem lembro se comi, dropei umas caipiras antes de acender o fogo e fiquei mais preocupado com a temperatura das garrafas que da carne. Sábado a ressaca com a mão pesada, tava batendo forte, contra-ataquei com uns latão, encostado nos fundos do posto com a rapeize, só flagrando os doidinho tirando uns racha de Parati, Chevette e Gol Chaleira. Domingo rolou rave na região metropolitana, no meio do mato, não virava ir de bonde, botei uma gasolina na Bizz e meti o pé; duas carteiras de Minister depois já tinha descido whisky com energético, vodka com suco, vários ampola, um doce e umas água colorida que os parceiro botaram, sei lá qual fita, puta gosto de remédio. Bati a nave antes da hora, cheguei em Grayskull sem nem aproveitar a viagem, ensaiava falar e não saia voz, tava tenso, me mordendo, fiquei nervoso: deu bad. Tentei endireitar a caminhada tomando umas águas, mas não rolou, a conta não batia, os dentes rangendo, coração agitado querendo se mudar do peito. Precisava voltar pra minha goma, tomar um banho, talvez dois, sei lá, só precisava vazar, montei na moto e fui. Tava com dois IPVA atrasados, cabreiro de cair numa blitz, e se soprasse um bafômetro explodia a máquina – certeza. Queria chegar logo, entrei no modo Valentino Rossi e corri a milhão, como se fosse fuga. Foi aí que deu ruim no piloto automático, se pá que dormi em cima do jato, lembro só de uns clarão, uns flash. Vi o céu por baixo, deitado no asfalto, sei lá qual fita, tudo nublado, que dia bosta. Me liguei e já tava todo remendado no hospital, numa sala com umas vinte cabeça, todo mundo fudido, uns mais outros menos. Eu? Era cabeça de chave do grupo dos desgraçados: com a lata do frankstein, olho roxo, cara inchada, nariz quebrado, uns ponto na testa. Trinquei uma costela e quebrei outras duas, a clavícula rachou e a mão tava na carne viva. O médico foi desenrolando essa lista aí e eu aceitando na moral, os pensamentos embaçados, cheio de analgésico, todo bagunçado de dor. Aí teve uma mão que ele deu uma pausa, ficou mais bolado e mandou A real: disse que eu sofri um choque cabuloso no quadril, perdi mais de 80% do fígado, que num tinha como dizer o tamanho real do estrago, mais uma fita era certa, nunca mais ia poder beber, se tomar meia lata que seja, posso encomendar o caixão. Acordei umas três vezes crente que tava tendo um pesadelo, foquei umas horas que tava numa brisa errada de doce. Mas não. A vida é uma viagem desgraçada.