
Teus pés. Lembra, meu bem, como eu dizia que eram os mais bonitos que já vi? Sempre achei uma parte do corpo bela demais para ficar no chão, tão longe dos olhares. Gostava de massagear os seus. Trinta e quatro o seu número, né? Seus sapatinhos parecem de boneca.
E tuas coxas gordinhas, hoje estão mais brancas do que nunca. Como eu gostava de ficar entre elas. Sabe, eu reclamava de tuas saias curtas, mas no fundo sempre gostei. Acho que é coisa de homem reclamar dessas coisas.
Estamos quase prontos. Tenho que terminar esta mala. Será que vai caber tudo?
Ah, sua cicatriz no braço. É de infância, né? Você me contou uma vez. Foi passar por uma cerca de arame farpado e acabou se cortando. Quem dera todas as feridas fossem tão fáceis de se fechar. Olhe para você hoje. Aonde chegamos?
E tuas mãos, minha linda, veja como mesmo frias se entrelaçam às minhas. Tão miúdos os teus dedos, embora tão prazerosas fossem suas carícias. E a nossa aliança, onde está? Tirou para o banho? Bem, talvez eu deva procurá-la antes que a gente vá embora. Não podemos demorar muito.
É uma pena, meu amor, que as coisas tenham desandado desse jeito. Agora temos que partir. É, partir. Partir como esta borboleta que você leva no pescoço. Tão bela, mas tão frágil.
Você tem alguma bebida decente guardada nessa casa? Estou precisando de um trago. Aqui no armário, certo? Ah, sim, este uísque que você sempre guarda e nunca bebe. Estava guardando para mim, certo? Você é um amor, sempre me surpreende.
Isso aqui dá um trabalhão, querida, mas estou quase acabando. Posso levantar sua blusa? Quem sabe admirar seus seios me anime um pouco. Sabe, meu bem, cada partezinha do seu corpo costumava se juntar de forma tão perfeita. É mesmo uma pena que tenham que ficar separadas. Mas não há outra maneira.
Enquanto te desmancho, também me desmancho por dentro. Alguns diriam que é frieza, mas acredite, faço isso com todo o pesar deste mundo. A cada peça do teu corpo, um pedaço do meu coração é igualmente repartido. Um coração envenenado, apodrecido, mas ainda de carne, pulsante. É o instinto de sobrevivência eu acho. A gente faz coisa que nunca imaginava ser capaz.
É tão duro te perder. Não estava nos meus planos, mas aconteceu. Não posso me entregar, você entende? Você foi e sempre será a única a quem um dia eu me entreguei. Agora me resta lavar com lágrimas este chão de sangue.
Você sempre foi minha pequeninha. E veja só como isso é bom para mim agora, até nesse momento tão terrível. Acho que uma única mala bastará. Você sempre me surpreende.
Murilo
PS: Este conto inédito fez parte da edição especial do Obscenidade Digital no Jornal RelevO. Se você ainda não tem o seu exemplar em mãos, entre em contato com a gente 😉
Crédito Foto:Nomadic Lass via Compfight cc