
Eu tinha acabado de almoçar e estava, há uns dez minutos, ainda sentada à mesa da copa, olhando a televisão. Olhando, mas não vendo, realmente.
Percebi então formiguinhas bem pequeninas andando sobre a mesa, perto da toalha. Eram muitas. No mínimo dez.
Saí daquela inércia e fui pegar papel toalha e álcool. Não sei por quê. Me pareceu uma boa ideia.
Tirei aquelas da mesa e as olhei, por breves segundos, se agitando no papel. Me perguntei de onde elas tinham vindo.
Afastei uma cadeira e lá estavam, várias outras, no assento. Com outro pedaço de papel recolhi aquelas, e continuei procurando de onde elas vinham.
Até que vi, próximas ao rodapé, outras tantas. Ainda com o álcool, passei outro pedaço de papel no chão, e vi muitas mais saírem debaixo dele.
Por pelo menos um minuto fiquei estupefata.
Quase sem pensar peguei uma faca da mesa e, já de cócoras, a enfiei por trás do rodapé, no vão que o separava da parede. A casa já não é tão nova, e há muito não tinha a manutenção adequada, então ele se descolou facilmente.
Mais formigas. Mais rodapé arrancado. Mais formigas.
Agora a sua trilha parecia se estender por baixo do assoalho. Os pequenos taquinhos de madeira, encaixados, se desprendiam facilmente. O que veio primeiro? O assoalho ou as formigas?
Afastei a mesa e continuei trabalhando.
O jornal virou novela, que virou filme, que virou novela e depois jornal e novela de novo. O céu lá fora foi do azul ao cinza e, depois da chuva, o sol se pôs e o pintou de tons de laranja e rosa.
A vida continuou lá fora, apesar de, aqui dentro, ela ter ficado suspensa por boa parte do dia. Eu nem havia percebido.
Tirei sofás e cadeiras e mesas e tudo o mais que pudesse haver no meu caminho. Nem me lembro quando foi que acendi as luzes.
Por todo o lado pedaços de madeira aqui e ali se empilhavam e eu parecia ter chegado, finalmente, ao centro do formigueiro.
Descobri que por baixo do assoalho houve, antes, outro; agora boa parte desse se assemelhava á terra, devido, provavelmente a ação das formigas e dos cupins.
Ou seja: a base da minha casa já estava podre.
Qualquer dia desses eu poderia acabar caindo sentada no meu porão, e, se tivesse sido no andar de cima, quem sabe um pedaço do teto aterrissaria sobre a minha cabeça.
Tá, tudo bem; talvez isso seja exagero. Mas eu já tinha visto em algum filme ou série de TV, mais de uma vez até, pessoas descompensadas revirando assoalhos atrás do barulho de algo ou de um inseto, como se tivessem sido disparados gatilhos silenciosos de loucura e busca incessante – disse isso a mim mesma, como se pudesse, dessa maneira, justificar a insanidade por trás do que eu estava fazendo.
No centro, depois de cavoucar naquela mistura já dura de sedimentos, eu a encontrei. Ela era muito maior e muito mais gorda do que todas as outras. Há quanto tempo ela estava lá, naquela mesma posição, sem sair sequer um centímetro do lugar, ano após ano?!
E, mais importante: o que fazer com ela?!
Levantei. Meus joelhos e cotovelos doíam, após eu ter passado tanto tempo sobre eles. Meus olhos também; mesmo os meus óculos não poderiam ter protegido minha vista cansada por tanto tempo.
Passei a mão suja na testa, pra impedir que o suor salgado ardesse nos meus olhos. Fui para a cozinha, e na pia lavei meu rosto. Peguei um pouco de gelo para as minhas mãos, que agora latejavam (mais do que a minha cabeça), e percebi como elas estavam avermelhadas, arranhadas e cheias de farpas.
Engoli vários copos de água gelada, e, com o canto dos olhos, vi a hora no relógio pendurado na parede. “Caralho, eu tinha consulta marcada pra hoje! E aula também! Quanta ligação perdida não deve ter no celular?!… Merda… Espero que ninguém tenha deixado recado de voz. Meus créditos estão acabando, e eu odeio ver aquele simbolozinho na tela. Parece que ele é um lembrete da minha infinita falta de interesse nessa vida que eu venho levando”.
Pela porta vi tudo revirado e amontoado, as pilhas de taquinhos aqui e ali, e aqueles montinhos que lembravam terra.
A vida se infiltrou, de uma maneira estranha e única, por entre frestas, nichos, sedimentos e pó, e se estabeleceu, já há anos, logo abaixo dos nossos pés. Transitamos sobre ela vezes incontáveis, totalmente ignorantes quando a sua existência.
“O que diabos eu vou fazer com essa bagunça agora? Encaixar tudo de volta no lugar, como se nada tivesse acontecido?!”. E se chegasse alguém pra visitar?
Esse pensamento até me provocou uma risada, que saiu da minha boca como uma tosse (há horas eu não dizia nada – em voz alta); há dias, meses, e talvez anos ninguém aparecia para visitar.
Mas e o que fazer com ela?!
“Me desculpem por ter matado outras companheiras… Mas eu posso ser sua nova rainha!… Se bem que eu mal consigo reinar na minha própria vida…”.
Caí então num transe incrédulo: como é que eu fui fazer aquilo?! Eu nem mesmo me considero uma pessoa impulsiva!
Mas elas mexeram comigo… Pequenas, curiosas, errantes, andando e explorando pra lá e pra cá. Perseverantes, escusas, infiltradas. O que é e onde se escondem de mim?!
Hoje ela vive. Hoje o ponto é de vocês.
“Eu preciso ir tirar essas farpas das mãos, se os meus olhos e coordenação motora me permitirem. Preciso tomar um banho e ir dormir, porque amanhã de manhã eu tenho que tentar remarcar a consulta e a aula”.
Subi as escadas e tomei um banho frio, pra tentar aplacar o inchaço e o calor.
Eu poderia dizer que deitei, mas na verdade tombei na cama, ao som do mala do vizinho, mais uma vez abrindo incontáveis latas de cerveja, e ouvindo e cantando Capital Inicial. Que vibe…
Pensei comigo que isso era pra fechar a surrealidade do dia de hoje com chave de ouro, pouco antes dos meus olhos fecharem e ele cantar desafinado “… e eu acordei sem saber se era um sonho…”.
Texto da amiga Maritsa Kantikas.